Não é tarefa fácil assistir Entre a luz e a sombra, pelo menos não da maneira que deve ser visto. Em primeiro lugar porque, logo de cara, o filme, cujo tema é o futuro (ou não-futuro) de pessoas que entraram na vida do crime, parece ter vindo ao mundo na época errada. O longa trata de figuras reais que, no começo da década, eram presenças fáceis em programas de televisão de domingo (os rappers Afro-X e Dexter, do grupo 509-E, que passaram a ter espaço garantido no ano 2000, após vir à tona o namoro de Afro com a cantora Simony, ex-Turma do Balão Mágico) e hoje sumiram. No caso de Afro-X, nem tanto, já que ainda conseguiu ficar relegado ao gueto do rap paulista. Na verdade, a personagem principal do filme é a atriz Sophia Bisilliat, responsável pelo projeto Talentos Encarcerados, que ensinava arte aos presos do hoje extinto complexo prisional do Carandiru, desde os anos 80. A dupla de rappers cruza seu caminho durante seus trabalhos voluntários na prisão. E o entrecortar das trajetórias é mostrado desde o começo, no início da década, quando Afro e Dexter faziam um rap chocho, decalcado dos Racionais MCs (de quem chegaram a roubar o verso "apoiado por mais de 50 mil manos", que nas mãos da dupla iniciante reduziu-se para 5 mil). E passa pelo crucial momento em que a determinada Sophia vira empresária da dupla e mulher de Dexter, que ainda cumpria pena.
Segundo, porque, ainda que não seja a intenção do filme, a narrativa (e, vá lá, não tinha outro jeito, já que é quase tudo calcado em depoimentos) sofre com todos os clichês da cultura "de periferia" dos últimos dez anos. Cultura essa que inclui o bom e velho blá-blá-blá criminalizador da pobreza (que, muitas vezes, acaba sendo proferido mais pelos próprios, vá lá, bandidos do que pelos policiais, e no caso de Entre a luz... não é diferente), a apologia do rap à moda de Eduardo Suplicy, a síndrome de "menino branco" (como no primeiro verso de Mais do mesmo, da Legião Urbana, que Renato Russo copiou sem piedade de Waiting for the man, crônica dos guetos do Velvet Underground) e a sensação de que é preciso fazer alguma coisa, ainda que não se saiba exatamente que coisa é essa que deve ser feita. Tudo isso, direta ou indiretamente, está lá. Do meio para o fim do longa, a sombra da ingenuidade vai desaparecendo, embora haja o risco de Entre a luz e a sombra, injustamente, acabar sendo visto como apenas um filme sobre pobreza e violência que ainda usa os mesmos apaixonados chavões da década de 90 para falar de tais assuntos. Na verdade, se trata de um documentário que, a partir das intenções iniciais, flagrou um entrelace de projetos de vida que nem o mais criativo teledramaturgo poderia imaginar - e se aproveitou disso.
Sem a intenção de dramatizar ou romantizar demais, Entre a luz e a sombra ainda tem um recheio extra, que é o enfoque na relação de Sophia e Dexter - marcada por momentos em que a condição de presidiário deste último parece nem existir, e por outros em que, mais que o peso do encarceramento, é o estilo malvadeza-durão do rapper (intensificado após os primeiros shows do 509-E, feitos sob autorização judicial conseguida pela própria Sophia) que põe tudo a perder. Um grande atrativo é o fato do filme ser feito por uma equipe-do-eu-sozinho (a) - a jornalista Luciana Burlamaqui, que começou o documentário a partir de suas pesquisas sobre violência, dirige, faz o roteiro e grava imagem e áudio, além de produzir, só pecando por deixar o filme muito extenso, com longos instantes de silêncio. Para fãs de rap, ainda há outra cereja no bolo: uma rara aparição de Mano Brown, dos Racionais, por alguns segundos, despedindo-se dos amigos Afro-X e Dexter quando a dupla deixa o local de um show sob a custódia de policiais. No mais, assista com tempo de sobra e disposição para refletir.
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