NEGRIARA
NEGRA, Iara Félix
Guerra dos "Lugares"- Educação e Currículo, Lazer e Juventudes, Geografia de Gênero e Relações Étnico Raciais
“Cineastas negras: trajetórias socioespaciais e narrativas cinematográficas” - Pautas silenciadas e diálogos ausentes: uma análise fílmica de O Dia de Jerusa
NEGRIARA
CURRÍCULO - NOVO ENSINO MÉDIO E RELAÇÕES RACIAIS
É recorrente a abordagem de que o arcabouço legal a partir de 2003 tem tensionado o currículo hegemônico e as relações étnico-raciais nas instituições educacionais, fortemente marcadas pelo racismo, preconceito racial e discriminação racial.
Currículo Referência do Ensino Médio contou com a colaboração de professores e pesquisadores de instituições de ensino superior de Minas Gerais
Representantes de diferentes entidades fizeram a leitura crítica da versão preliminar do documento
A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) elaborou, ao longo de 2020, o novo Currículo Referência do Ensino Médio, para todo o Sistema Estadual de Ensino de Minas Gerais, em regime de colaboração com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação de Minas Gerais (Undime-MG). O novo Ensino Médio traz uma série de novidades visando a tornar essa etapa de ensino mais atraente para os estudantes, colaborando para evitar a evasão e garantir mais qualidade na formação desses jovens. Ele segue o que definiu a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para essa etapa da educação básica.
Buscando envolver os principais interessados nessas mudanças e, ao mesmo tempo, agregar no documento experiências de diversas áreas do conhecimento, a SEE/MG e a Undime convidaram instituições de ensino superior para fazerem a leitura crítica da versão preliminar do Currículo Referência de Minas Gerais. Com isso, a versão final do documento foi enriquecida com os olhares e saberes de outros atores importantes, os profissionais acadêmicos que formam os professores da educação básica.
Atendendo a um convite da SEE/MG, 14 instituições de ensino superior tiveram representantes no processo. Pesquisadores e professores desses órgãos foram leitores do documento e participaram de seminários que discutiram, junto com os redatores do Currículo Referência de Minas Gerais e equipe da SEE/MG, as recomendações feitas. “A troca de saberes de profissionais que trazem experiências de seu trabalho nas universidades com os redatores do currículo, que possuem conhecimento do cotidiano de milhares de alunos e da realidade de nossas escolas, foi uma soma positiva e necessária para a materialização de uma aproximação entre o Ensino Superior e a Educação Básica”, comentou a coordenadora estadual do Currículo Referência de Minas Gerais da etapa do Ensino Médio, Iara Viana.
Colaboradores
A contribuição na leitura crítica do Currículo Referência do Ensino Médio teve a participação das seguintes instituições de ensino superior: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri; Universidade Federal do Triângulo Mineiro; Universidade Federal de Viçosa; Universidade Federal de Uberlândia; Universidade Federal de São João del-Rei; Universidade Federal de Ouro Preto; Universidade Federal de Lavras; Universidade Federal de Alfenas; Universidade Estadual de Montes Claros; Universidade do Estado de Minas Gerais; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Instituto Federal do Triângulo Mineiro; Instituto Federal do Sul de Minas Gerais; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais.
O documento final do Currículo Referência do Ensino Médio, a ser publicado após aprovação no Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais (CEE), dará crédito aos leitores cujos nomes constarão de uma relação de colaboradores.
Novo Ensino Médio
O Novo Ensino Médio está sendo construído por meio do Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (PROBNCC). A partir dele, serão feitas mudanças pedagógicas, no tempo e na estrutura do currículo dessa etapa da educação básica. Uma das mais expressivas será a introdução de uma parte flexível no currículo, o que permitirá aos estudantes escolher disciplinas que querem cursar, a partir de um conjunto de opções oferecidas pelas escolas.
Atendendo à Base Nacional Comum Curricular, o Currículo Referência do Ensino Médio será composto pela Formação Geral Básica, que considerará as aprendizagens comuns e obrigatórias, e os Itinerários Formativos, a parte do currículo em que ocorrerá a escolha dos alunos em conteúdos que se relacionam com seus interesses.
O objetivo da SEE/MG é que o Currículo Referência do Ensino Médio seja homologado pelo Conselho Estadual de Educação neste ano. A previsão é de que o novo currículo comece a ser implementado em 2021, com a ampliação do número de escolas piloto.
Por Iara Pires Viana
ROLEZINHO
Etnografia do Rolezinho
Eu tenho ficado quieta nesse caso do rolezinho porque este talvez seja o assunto que mais seja caro à minha sensibilidade acadêmica e política. Esse tema é justamente o que me faz me afastar de uma certa antropologia vulgar com suas interpretações do tipo “que lindo essas pessoas se apropriam das marcas e dão novos significados e agência e bla blá blá prá boi dormir”. Mas também é este tema que me aproxima ao que a antropologia tem de melhor: ouvir as pessoas. Não há uma grande diferença do rolezinho organizado e ritualizado das idas aos shoppings mais ordinárias (ainda que a ida ao shopping pelas classes populares nunca tenha sido um ato ordinário), eu vejo uma continuidade que culmina num fenômeno político que nos revela o óbvio: a segregação de classes brasileiras que grita e sangra. O ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia. Quando eu vejo aquele medo das camadas medias, lembro daquelas pessoas que se referiram “aos negões favelados”. E há certa ironia nisso. Há contestação política nesse evento, mas também há camadas muito mais profundas por trás disso.
Eu estou acompanhando os rolezinhos e sinto certo prazer em ver aquela apropriação. Mas entre apropriação e resistência há uma abismo significativo. Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato. O tema é complexo não apenas porque desvela a segregação de classe brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre o Norte e o Sul. E enquanto esses símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica. Por isso, para entender a relação que as periferias globais tem com as marcas e os shoppings, é preciso voltar para os estudos colonialistas e pós-colonialistas. A apropriação de espaços símbolos hegemônicos, desde Mitchell até Newell, passando por Bhabha, Rouch e Ferguson, nos mostra uma permanente tensão na apropriação que tenta resolver a brutal violência que esta por trás desse ato. O meu lado otimista, não nega o que esses jovens nos disseram: do prazer que sentem em se vestir bem e circular pelo shopping para SER VISTO. Meu lado pessimista, tende a concordar com Ferguson de que há menos subversão política e mais um apelo desesperador para pertencer à ordem global. É preciso entender o rolezinho dentro de uma perceptiva do Global South de séculos de violência praticada na tentativa de produzir corpos padronizados, desejáveis e disciplinados.
O pobre no shopping repete a mimeses de Bhabha. A classe media disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve. A classe media vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe media não se reconhece no Outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso. Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da política do rolezinho é que ela é um ato fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta. Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do Outro e, claro também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar.
Qual é a minha cor? A construção cultural da afirmação do nosso povo
Qual é a minha cor? A construção cultural da afirmação do nosso povo
Estamos no século XXI, no ano de 2011. É raro nos dias de hoje você encontrar alguém que tenha consciência de sua cor/raça e classe. Quando digo consciência é na tentativa de expor as disparidades existentes entre a cor da minha pele e a cor que aprendi a ter.
Somos de cor preta mas criados como "morenas e morenos”, ou seja, sempre é incutida em nossa cabeça uma cor inexistente. Até os dias atuais a minha cor é tida como uma cor suja, que lembra coisas ruins, dentre outros coisas. O Preto é sempre visto como pejorativo.
A Elite racista ensina que para sermos aceitos precisamos nos adequar. Eles consideram aceitável uma pessoa de cor "morena", mas é repugnante a afirmação de que somos negros. E ser preto na nossa sociedade é remeter-se a situações de medo, injúrias, calamidades. Mas para nós não é só isso, ser preto é ir à guerra com apenas uma arma e vencer os obstáculos com obstinação.
A existência de raças no conceito biológico foi extinta. Utilizamos a expressão raça negra para afirmarmos as nossas virtudes, outrora negadas. A palavra negro vem do latim necro. Essa expressão significa ausência de vida. Até essa expressão nos foi submetida sob um olhar de diminuição. Mesmo assim, encaramos hoje o ser negro com o olhar da afirmação política, utilizamos a expressão negro por este olhar que demarca as diferenças nos coloca como iguais e nos imprime a necessidade de construção da consciência racial.
A cor que eu tenho é a cor da luta, da força de vontade e da transposição de montanhas todos os dias. A cor que tenho é a vela do barco do mundo, porque eu escolhi mudar o mundo assim como fez Zumbi. Pretensão demais?! Nunca, está na hora de termos orgulho de nossa raça. A cor que tenho me ensinou a ir à luta e a nunca negar-me.
A cor que eu tenho não foi construída socialmente (essa foi a cor que me deram). A cor que tenho foi trazida por meus ancestrais no corpo e se expandiu no mundo. A minha raça que durante muito tempo conviveu com a escravidão, nos dias atuais ainda convive com a dor do preconceito, do estigma e do ódio.
Então, qual a minha cor? A minha cor é que aprendi a ter ou a que tenho de fato? É hora de repensarmos os fatos, os conceitos, as idéias, o mundo. É hora de entendermos que a época é outra e que o começo não justifica os meios, muito menos o fim da história, de uma história que parece não ter fim.
É triste que mesmo depois de tantos sofrimentos, nós negros tenhamos que abdicar dentre outras coisas do nosso direito a cor. Que tenhamos que abrir mão do nosso direito à afirmação enquanto raça, enquanto seres humanos que deveriam ter direitos iguais.
Estamos na nossa vez. Reivindicamos a nossa luta, do povo preto e pobre brasileiro.
A minha cor construiu um Brasil que não é nosso. A nós, cabe pegarmos de volta o que nosso sangue forjou em luta. Se não nos derem, tomaremos com sangue, suor, poesia e muita luta
Viva o povo brasileiro, vivo o povo preto!
Feminismo Negro
Relações Afetivas e as Mulheres Negras: novas linguagens hão de ser sentidas
Poucas coisas tocam tanto a variadas pessoas quanto discussões sobre romances. Isso talvez por esse tema nos remeter à sexualidade e à família, temas vistos como muito importantes por quase tod@s em nossa sociedade. Filmes, programas de TV, literatura, histórias imemoriais, há muito que se contar sobre isso. Muito se fala sobre romantismos e anti-romantismos, todavia, um ou outro pólo não explora a infinidade de elementos envolvidos em relações dessa natureza.
Se é sabido que todas as pessoas do mundo não se comportam da mesma maneira, no assunto aqui tratado não seria diferente. Falando aqui do grupo social de pele negra, é notório que, apesar da grande variedade que abriga, são pessoas desconsideradas em sua origem cultural e em suas características, com um passado e um presente de dificuldades e privações, contudo, de resistência e criatividade, é sempre bom destacar.
Imaginem a maneira de se comportar diante da escravização, da discriminação, de diversas formas de violência. Bell Hooks, mulher negra, ativista e escritora norte-americana, fala em um de seus escritos, que a escravização e seus efeitos impactaram profundamente o ato de amar, isso se deu tanto da parte do grupo negro, quanto da parte dos outros grupos raciais que com ele vêm se relacionando (ou negando se relacionar!). A desumanização da pessoa negra, infelizmente até hoje em operação, impacta a sociedade como um todo e cria formas e formas de vínculos. Se mulheres de todas as cores são discriminadas pelo machismo, se negr@s de todos os gêneros são discriminad@s pelo racismo, é de se considerar a junção de discriminações que carregam as mulheres negras, sem contar as tantas outras marcas que na vida carregamos.
Quem nunca se questionou pelo fato de as mulheres consideradas bonitas na televisão/cinema serem quase sempre brancas ou com traços próximos a isso? Qual a razão de em nossa sociedade as musas da poesia, da música e das artes em geral, retratarem positivamente só tipo e cotidiano da ?delicada? mulher branca, retrato que em quase nada retrata a vida das negras? As mocinhas, as mulheres consideradas ?dignas?, as princesas, bonecas e demais figuras formadoras dos padrões e gostos serem majoritariamente brancas e tudo que remete a negritude ser considerado feio, impuro, animalizado?
E por qual motivo as piadas, cantadas e outros ditos populares, colocam a pessoa negra em local de ridículo e negação? ?Mulher branca pra casar, mulata pra fuder, preta pra trabalhar...?, ?nega do cabelo duro...?, ?neguinha safada...?, ?nega do suvaco fedorento...?, ?nega metida e abusada...?, ?não é que eu sou racista, mas negra é mesmo feia, é meu gosto?, entre outras atrocidades encaradas como ?tranquilas? expressões de opinião individual. Linguagem criadora e criatura de uma pulsão intolerante de violência e morte.
O racismo só se manifesta diretamente? Não e não! Agressões físicas e verbais diretas manifestam racismo sim, mas não só elas. Falta de representação é racismo violento! Desamor e desafeto também! Negação da história de um povo também é! Olhares, emanações, expressões, diversas formas de tratamento podem ser racismo que, se somado ao longo da vida, mata trajetórias e gera incríveis feridas em toda uma população, tolhe seu caminho. Todo um leque de ação no mundo vê e trata @ sujeit@ negr@ como alvo de violações, ainda que de forma supostamente velada e inconsciente.
Voltando ao papo dos romances, é comum ouvirmos pelas ruas mulheres negras dizendo: ?Faço tudo pela pessoa que amo, mas ela nunca assume um relacionamento comigo?; ?Comigo só querem sexo?; ?Me disseram que sou maravilhosa em tudo, que torcem pra eu ser feliz, mas que é melhor não se envolver...?, ?Na hora da paquera já chegam junto sem o menor cuidado, como se eu estivesse à disposição?; entre outras pérolas, isso quando há histórias pra narrar, pois é muito comum não haverem interações por sermos ignoradas. Sem contar as famílias nas quais, se alguém que as integra se relaciona com pessoas negras, geralmente ess@ alguém é desaprovad@ e a parceira é agredida por todo lado, inclusive pel@ parceir@ que geralmente não segura à barra e não vence seu próprio racismo arraigado. A possibilidade de filh@s negr@s é execrada, somos negadas em carne e alma.
Não é à toa que muitas mulheres negras envelhecem e morrem como vítimas de violência doméstica, chefas solitárias de lares inteiros, mães solteiras. Ainda sendo abordadas como mucamas que eram estupradas pelo senhor de escrav@s, amas de leite e babás dos filhos de mães brancas, corpos para turismo e exportação genocida, mulheres que se doaram muito e depois permanecem solitárias, zeladoras da casa e de todo capricho imposto pelo poder pigmentocrático.
Se a pessoa negra ocupa o lugar do que é feio, perigoso, impuro, incapaz, animalizado, do que deve só servir, como poderia essa pessoa ser desejada/vista como possível companheira, esposa, alguém que merece carinho, alguém para dar continuidade aos laços parentais e às tradições da família? Os gostos e intenções brotam da mente, mente bastante fruto da história e da cultura; nada é tão por acaso. Coloquemos todos os nossos gostos e desejos sob análise e vejamos o que os direciona.
Não adianta pessoas não negras dizerem que quem mais se discrimina é @ própri@ negr@, isso é querer tirar o corpo fora. Francamente, não é ato de heroísmo manter intacta a auto-estima quando o mundo só oferece desrespeito? Bem sabemos que não somos tratadas como delicadas ou frágeis, sabemos também que não queremos ser isso ou aquilo. Exigimos é sermos olhadas como seres integrais que podem ser da forma que quiserem ser. Mulheres de todas as cores não são simples objetos do desejo alheio!
Um dia ouvi uma história sobre a filha de uma amiga: ?Mãe, gosto de um menino na escola, mas ele não me quer porque diz que sou uma preta feia...?. A menina achava que o problema era ela, sofria com esse peso; afinal ninguém agüenta carregar um erro histórico como se fosse algo só seu. (Daí a importância da coletivização! Da troca com quem vive a mesma coisa!). Então, a mãe belamente respondeu: ?Filha, problema dele que é limitado, que só vê um tipo de beleza, azar dele que não tem olhos pra ver as várias belezas no mundo?. Linda resposta afirmativa! Será que o problema é só nosso, ou é, sobretudo, de uma sociedade limitada em seus arranjos e formas de percepção?
Mulheres negras em idade avançada costumam já ter uma história de poucos resultados na vida afetivo-sexual. Mulheres negras jovens não foram ou são as noras ideais do passado ou as minas descoladas do presente, peso de lugares e não lugares, poucos espaços de livre-expressão. Contudo, estamos sempre na glória de nossas reinvenções na maneira de existir apesar, a levar, transitando margens e cantando estradas. Sejamos nosso centro!
Há quem tenha a coragem de dizer que um artigo como esse é vitimização, o que nos soaria como insensibilidade em não encarar a força dos fatos. A intenção é que nós negras nos leiamos aqui como legítimas figuras de resistência que, como a terra, fazemos brotar flores do lodo. Como a terra, continuamos ocupando posições fundamentais na reprodução física, econômica e cultural de uma sociedade que nos rejeita. Ainda assim, sempre é tempo de exigir o que de nosso é o bem e o direito; mudar nosso foco, gritar por órgãos que possam captar o profundo de nosso toque, cheiro, gosto, visão, sons. E que possam nos oferecer tudo isso também. Há que se expandir a percepção. Há que se sentir novas linguagens ou esse mundo não será possível para nós. Ainda assim escolho primeiro festejar, ?Vem celebrar comigo, que todo dia alguma coisa tentou me matar, e fracassou...?. Somos sobreviventes, somos vivas viventes!
A mulher negra brasileira
Ser mulher e ser negra no Brasil significa está inserida num ciclo de marginalização e discriminação social. Isso é resultado de todo um contexto histórico, que precisa ser analisado na busca de soluções para antigos estigmas e dogmas.
A abolição da escravatura sem planejamento e a sociedade de base patriarcal e machista, resulta na situação atual, em que as mulheres afro-descendentes são alvo de duplo preconceito, o
racial e o de gênero.
Ascender socialmente é algo muito difícil para a mulher negra, são muitos obstáculos a serem superados. O período escravocrata deixou como herança o pensamento popular, em que, elas só servem para trabalhar como domésticas ou exibindo seus corpos.
As que se destacam, tiveram que provar mais vezes do que as mulheres brancas a sua competência, por isso, é que é possível afirmar que a questão de gênero é um complicador, mas se esta for somada a questão de raça, o resultado é maior exclusão e dificuldades.
Analisando dados de pesquisas realizadas pelo DIEESE e outros órgãos, é possível verificar que o preconceito resulta em salários mais baixos para os negros em relação aos brancos, incluindo o item gênero, inferi-se que o homem negro ocupa um patamar abaixo do da mulher branca quanto ao rendimento salarial. Mas as mulheres negras se encontram ainda mais abaixo na pirâmide ocupacional.
No que diz respeito a escolaridade, pesquisa realizada em 2006, revela que entre as mulheres negras com 15 anos ou mais, a taxa de analfabetismo é duas vezes maior que entre as brancas, no que tange ao trabalho doméstico infantil, 75% das trabalhadoras são meninas negras.
Devido à extrema pobreza, as meninas ingressam muito cedo no mercado de trabalho, sendo exploradas pela sociedade, que sabendo da sua condição financeira, oprime e humilha. Como é possível verificar, para as mulheres afro-descentes o mercado reserva as posições menos qualificadas, os piores salários, a informalidade e o desrespeito.
Apesar dos avanços alcançados pelas mulheres no mercado de trabalho, ocupando posições importantes a nível profissional, este avanço é muito reduzido quando se observa o universo negro. Há poucas mulheres negras trabalhando como executivas, médicas, enfermeiras, juízas, dentre outras profissões de destaque; o que se verifica ainda é a grande maioria realizando trabalhos domésticos e recebendo baixos salários.
Mesmo as que possuem diploma universitário, sofrem as discriminações do mercado. Muitas não conseguem exercer a profissão que se dedicaram na universidade e sem opção continuam exercendo as mesmas profissões de outrora.
Quando o item analisado é a saúde, verifica-se a continuidade da desigualdade. O percentual de mulheres negras que não possuem acesso ao exame ginecológico é 10% superior ao número de mulheres brancas; pesquisa de 2004 revela que 44,5% das mulheres negras não tiveram acesso o exame clínico de mamas, contra 27% das mulheres brancas; entre 2000 e 2004, a infecção por HIV/AIDS subiu de 36% para 42,4% entre as mulheres negras, enquanto na população feminina branca, a incidência de casos diminuiu, no mesmo período.
Vale salientar, ainda, que as mulheres negras possuem menor acesso a anestesia durante o parto e a esterilização cirúrgica; apresentam menor expectativa de vida se comparada as mulheres brancas; e, 58% dos óbitos de jovens negras por causas externas referem-se a assassinatos.
Além da violação ao direito a um trabalho digno, a ascensão social, a educação e saúde, as mulheres negras são as mais vulneráveis quando o assunto é violência, isso porque, desde a época da escravidão a mulher negra é vista como objeto sexual, povoando as fantasias dos homens.
A mulher negra então é aquela que não possui vida psicológica, afetiva e intelectual. Enquanto a mulher branca era ”guardada e vigiada”, a mulher negra era submetida ao abuso sexual, ao estupro e a humilhações. No período escravocrata estuprar uma negra não era crime, e sim um sinal de virilidade do homem branco.
A mulher negra, por diversas vezes têm se mostrado a mantenedora da família, não só no contexto atual, em que sozinha criam e educam seus filhos, como também no passado. Isso por que, após a abolição e a imigração européia, não havia mercado de trabalho para o homem negro, coube a mulher negra o sustento da família, trabalhando nas casas dos ex-senhores ou vendendo quitutes.
Além de criarem seus filhos, abriram casas de candomblé, criaram seus filhos-de-santo e mantiveram vivos os laços comunitários originários da África. As fundações das casas de Axé foram imprescindíveis para a preservação da cosmovisão africana, da identidade e da cultura negra, da religiosidade que perpassa por todas as esferas da vida do povo africano. Foram estas casas que preservaram a tradição do culto aos orixás, bacuros, inquices e voduns, e as línguas africanas.
Enquanto na visão do colonizador a mulher possuía uma posição inferior, na cosmovisão africana as mulheres tinham e têm lugar de destaque, nas religiões de matriz
africana elas são guardiãs dos segredos, zeladoras do povo de santo, e um dos atores responsáveis pela perpetuação da cultura e da reconstrução da identidade negra no país.
Uma questão importantíssima a ser analisada com relação ao vagaroso progresso da efetivação dos direitos das mulheres negras, é quanto a representatividade política destas. Não há um contingente significativo de mulheres negras no parlamento, isso resulta muitas vezes na falta de criação e concretização políticas públicas voltadas para esta parcela da população.
As políticas implantadas são em sua maioria de cunho genérico, e num universo de desigualdades social, racial e de gênero é necessário a realização de políticas públicas específicas para as mulheres negras, posto que, são as mais vulneráveis em casos de ocorrência de violação de direitos humanos.
A mulher negra precisa ser valorizada não só pelos deliciosos quitutes, pelo seu molejo contagiante, pelo corpo sensual, mas principalmente pelas suas qualidades como ser humano, pelos seus dotes intelectuais. O mundo tem mostrado que é tempo de mudança, os Estados Unidos da América elegeu um presidente negro, os avanços raciais estão ocorrendo.
A melhoria da posição social do negro e especificamente da mulher negra é resultado de um esforço gigantesco. Homens e mulheres afro-descendentes têm lutado para levar dignidade ao povo negro, resgatar a sua identidade e auxiliar na busca da ascensão social.
O movimento negro brasileiro, algumas autoridades engajadas e outras pressionadas pela sociedade têm lutado para que o negro tenha o lugar que sempre mereceu, que o negro seja tratado com dignidade. Nesta luta surgiram os movimentos feministas, na busca pela implementação de leis que garantam os direitos básicos das mulheres negras.
É preciso lembrar que algumas contra toda adversidade conseguiram chegar a universidade, alcançaram um lugar de destaque na sociedade, mas as barreiras continuam. Não é possível haver satisfação enquanto outras continuam nos guetos passando fome, sofrendo as humilhações desta sociedade desigual e opressora.
O povo negro brasileiro está se organizando, as mulheres negras precisam “tomar” o poder, comandar seu destino, lutar, se organizar, transformar. Há de chegar o dia, em que vê uma negra recebendo diploma na área de medicina, advocacia,
odontologia, não causará mais espanto, porque teremos alcançado a tão almejada igualdade.
As mulheres negras, necessitam reencontrar a sua identidade, valorizar sua história e suas raízes, se assumir enquanto afro-descendentes e agentes ativos desse processo de democratização racial.
Por Walkyria Chagas da Silva Santos
Pós-graduanda em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia -UFBA
E-mail: kyriachagas@yahoo.com.br
PARA SABER MAIS:
SILVA, Maria Nilza da. A mulher negra. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/022/22csilva.htm.
PRAXEDES, Rosângela Rosa. Mulheres negras: reflexões sobre identidade e resistência. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/026/26rpraxedes.htm.
A mulher negra e pobre no Brasil. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/a-mulher-negra-e-pobre-no-brasil.
http://www.dieese.org.br/esp/estpesq14112005_mulhernegra.pdf
http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/estado/2007/05/10/ult4530u46.jhtm
www.casadeculturadamulhernegra.org.br
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, 2008
Mészáros: a emancipação feminina e as lutas de classes
Demétrio CherobiniSó quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão.
Rita Lee e Zélia Duncan
Com a proximidade do Dia Internacional da Mulher ganha força a exigência de se refletir acerca de um tema que interessa a todos nós da classe trabalhadora: através de que parâmetros se pode orientar uma luta coerente e radical pela realização de uma comunidade humana na qual estejam definitivamente abolidas as práticas sociais - que de múltiplas maneiras se expressam - de subordinação hierárquica e discriminatória das mulheres em relação aos homens? Em outras palavras: que tipo de igualdade se deve buscar? A condição para a resolução dessas questões é a máxima clareza possível a respeito do conjunto de relações que organizam o sociometabolismo humano no contexto onde atualmente se dão as batalhas pela emancipação feminina.
É necessário, então, que nos perguntemos: o que é que define, em todos os períodos de sua supremacia histórica, o ser da relação-capital? Em Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, o filósofo húngaro István Mészáros apresenta-nos uma resposta clara, sintética e precisa:
"As características essenciais que definem todas as possíveis formas do sistema do capital são: a mais elevada extração praticável do trabalho excedente por um poder de controle separado, em um processo de trabalho conduzido com base na subordinação estrutural hierárquica do trabalho aos imperativos materiais da produção orientada para a acumulação - 'valor sustentando-se a si mesmo' (Marx) – e para a contínua reprodução ampliada da riqueza acumulada. As formas particulares de personificação do capital podem variar consideravelmente, contanto que as formas assumidas se moldem às exigências que emanam das características definidoras essenciais do sistema." (2002, 781)
Eis aí, portanto, a essência da estrutura de relacionamento social hoje hegemônica sobre a superfície do globo e que nos domina a todos: uma forma fetichista e hierárquica de controle sobre a atividade produtiva humana, que se estabelece a fim de lhe extrair, num movimento sempre acumulativo e expansivo, a maior quantidade possível de trabalho excedente.[1] Paradoxalmente, tal sistema é o fruto da própria ação coletiva dos seres humanos, que, em certa época histórica, se autonomizou, voltou-se contra eles e passou a subjugá-los, compondo uma realidade profundamente antagônica na qual a criatura é a senhora dos seus criadores. Por tais razões, Marx definiu o capital como sendo a contradição em processo.
Mészáros se esforça, em seu magistral estudo, em desvelar o modo como esse sistema se organizou a partir de uma articulação dinâmica entre suas inúmeras partes constituintes – o capital é, no dizer do filósofo, um sistema de mediações -, cada uma delas inerentemente contraditória, que vai desde a família nuclear, os meios alienados de produção e o dinheiro, passando pelos objetivos fetichistas de produção e o trabalho "estruturalmente separado da possibilidade de controle", até as várias formas de Estado do capital e o "incontrolável mercado mundial", em cuja estrutura os participantes da atual ordem sociometabólica devem se integrar e se adaptar.[2]
O capital, diz o filósofo húngaro, não inventou todas as mediações materiais contraditórias que lhe conformam o ser. Algumas delas existem há milênios, como, por exemplo, a divisão hierárquico-estrutural do trabalho, que antecede historicamente em muito as formas embrionárias do capital. Entretanto, no momento em que este sistema se tornou hegemônico sobre a atividade produtiva humana, assimilou tal divisão, que veio a se constituir mesmo em um dos seus componentes fundamentais.
Nesse processo, esta mediação particular – a divisão hierárquica do trabalho - adquiriu novas determinações e, coadunada com todas as demais mediações do sistema, passou a compor a especificidade do complexo do capital como processo acumulativo e expansivo de exploração de trabalho excedente. "O mesmo acontece, diz Mészáros, com todas as formas de dominação historicamente precedentes: elas se subordinam ou são incorporadas às mediações de segunda ordem específicas do sistema do capital, da família às estruturas de controle do processo de trabalho, e das variadas instituições de troca discriminadora até o quadro político de dominação de tipos muito diferentes de sociedades." (2002, 206-7)
O mesmo acontece, pois, com a subordinação hierárquica e discriminatória das mulheres em relação aos homens. O capital, historicamente, não foi o responsável por produzir esse tipo peculiar de relacionamento contraditório. Contudo, uma vez que o sistema se tornou dominante sobre o metabolismo social humano, passou a englobar tal conflito e a se servir dele para realizar seus propósitos de exploração material. Daí a impossibilidade de, no interior do sistema do capital, as mulheres conseguirem mais do que uma igualdade meramente formal em relação aos homens e de atingirem, enfim, uma emancipação verdadeiramente digna deste nome.
Mészáros afirma que, dentro dos limites da ordem atual, é até possível encontrar algumas "ilhas" de relacionamentos igualitários, verdadeiramente horizontais, entre homens e mulheres, no meio do "oceano" de submissão e discriminação do sistema, mas tais casos não passam aí de eventos isolados. Nas palavras do filósofo:
"Pares isolados podem ser capazes de ordenar (o que certamente fazem) seus relacionamentos pessoais em verdadeira igualdade. Na sociedade contemporânea existem até mesmo enclaves utópicos de grupos de pessoas que interagem comunitariamente e podem se afirmar engajados em relações interpessoais não-hierárquicas humanamente satisfatórias e em formas de criar os filhos muito diferentes da família nuclear e suas fragmentações. Não obstante, nenhum desses dois tipos de relação pessoal pode se tornar historicamente dominante no quadro do controle sociometabólico capitalista. Sob as circunstâncias prevalecentes, o übergreifendes Moment [isto é, o momento predominante – neste contexto, o macrocosmo do capital] determina que os microcosmos da reprodução devem ser capazes de se aglomerar num conjunto abrangente que não pode, de forma alguma, funcionar numa base de verdadeira igualdade. O menor de todos os 'microcosmos' da reprodução deve sempre proporcionar sua participação no exercício global das funções sócio-metabólicas, que não incluem apenas a reprodução biológica da espécie e a transmissão ordenada da propriedade de uma geração à outra. Nesse aspecto, não é menos importante seu papel essencial na reprodução do sistema de valores da ordem estabelecida da reprodução social, totalmente oposto – como não poderia deixar de ser – ao princípio da verdadeira igualdade." (ibid., 269-70)
Ou seja, os "microcosmos da reprodução" - isto é, as famílias nucleares – estabelecem uma relação dialética com o "macrocosmo" do capital. Mas, em virtude desta instância ser o "momento predominante" da relação, as transformações históricas que porventura ocorram na estrutura das famílias devem se ajustar aos parâmetros mais amplos do complexo social do qual fazem parte - justamente, o sistema hierárquico de exploração de trabalho excedente. Ainda que essa determinação não seja absoluta – o que se comprova pelo fato de haver casos alternativos isolados de real horizontalidade –, o sistema vai sempre forçar suas microestruturas a reproduzir, a partir do seu interior, o sistema de valores necessário para a perpetuação da ordem maior. A subordinação das mulheres, portanto, apesar de não ter sido criada pelo capital, é reforçada por ele diuturnamente com o auxílio dos "microcosmos" que o sistema exige para prolongar no tempo e no espaço a sua vigência.
Mészáros explica que o capital perpetuou a subordinação das mulheres e se serviu dela historicamente de várias maneiras. Na família, como foi dito, reproduzindo os valores discriminatórios, antagônicos à horizontalidade das relações sociais e necessários para a manutenção da macroestrutura hierárquica de exploração da atividade produtiva. No "mundo do trabalho", por sua vez, atribuindo às mulheres, na mais larga escala, uma remuneração inferior à dos homens. Nesse contexto, diz o filósofo, apesar de se verificar a existência de algumas conquistas históricas – possibilitadas, entre outras coisas, pela expansão do capital em sua fase ascendente –, elas tendem a ser negadas na prática nos momentos em que o sistema porventura enfrentar dificuldades maiores para a realização da acumulação de capital – como na atual época de crise estrutural, por exemplo.
Mészáros assinala ainda que nem no campo da política a igualdade, a participação eqüitativa das mulheres em comparação com os homens, se materializou de forma efetiva. Isso se deve precipuamente ao fato de que, no sistema do capital, o Estado não tem, entre suas atribuições, a tarefa de promover a igualdade real entre os participantes de tal ordem sociometabólica. Por ser uma mediação constituinte indispensável da base material do referido complexo – fato que implica em férreas determinações -, sua função principal acaba sendo a de viabilizar – ora por meios diretos, ora por meios indiretos - a reprodução dessa mesma estrutura de controle hierárquica e discriminatória da qual ele é um dos elementos essenciais. O capital, diz o filósofo húngaro, nos momentos favoráveis para sua expansão, é até capaz de acolher, através do Estado, algumas das demandas sociais particulares de cada conjuntura histórica, desde que estas não modifiquem a estrutura mais íntima do "macrocosmo" do capital – ele não pode, portanto, proporcionar nada mais do que igualdade formal entre as pessoas.[3]
Ora, uma vez que as diversas contradições no plano do relacionamento social humano, criadas historicamente, se integram e se articulam organicamente dentro do grande sistema contraditório de produção e reprodução do capital, o objeto a ser negado – as "cadeias radicais" -, para todos aqueles que aí se encontram nas mais variadas posições de subordinação estrutural hierárquica, torna-se rigorosamente o mesmo: o próprio macro-sistema de exploração de trabalho excedente, com todas as suas correspondentes micro-estruturas de reprodução de valores e práticas sociais discriminatórias. Em outras palavras: além das demandas particulares inerentes à posição de cada grupo, há também uma contradição fundamental, que a todos afeta, e que deve, por isso, se converter em foco canalizador de suas plurais energias combativas.
Concomitantemente, a nova realidade a ser afirmada torna-se um objetivo comum para as múltiplas forças emancipadoras em questão: a realização de uma comunidade humana na qual estejam definitivamente superados os modos de relacionamento social organizados a partir de antagonismos estruturais hierárquicos e discriminatórios - ou seja, a configuração da sociedade dos produtores associados de forma livre, autônoma, cooperativa, sustentável, horizontal e consciente.
Aqui, no entanto, é cabível a seguinte pergunta: diante das tantas derrotas históricas dos movimentos que visavam à superação da ordem do capital, o que nos leva a pensar que a sua derrocada seja possível em nossos dias? Responde Mészáros: justamente, a nova época de crise estrutural do sistema do capital, na qual nos situamos, onde esta macro-estrutura se desenvolveu a tal ponto que acabou por produzir contradições potencialmente explosivas, para si e para todos os que se encontram no seu interior, e que comprometem por isso a sua viabilidade como controladora do sociometabolismo humano.
O filósofo explica que, durante a sua fase histórica de ascendência, o capital usou as mediações contraditórias como "motor" do seu processo de acumulação e expansão continuada. Com o término de tal fase de ascendência, contudo, alguns desses antagonismos começaram a se manifestar como poderosos entraves para o desenvolvimento do complexo global como um todo. Exatamente neste momento – em torno do fim da década de 1960 -, teve início a chamada crise estrutural do sistema do capital, uma situação em que a única maneira encontrada pela ordem vigente para lidar com as suas contradições mais problemáticas – os seus "limites absolutos" - foi fomentar uma forma de produção que tem na destrutividade (produção destrutiva) a sua dinâmica propulsora.
A produção destrutiva do capital se expressa de múltiplas formas: na precarização do trabalho, na degradação ambiental, na obsolescência planejada, no "complexo militar-industrial" - setor fundamental da economia mundial atual, onde as mercadorias (artefatos bélicos, etc.) se destroem imediatamente no ato mesmo do seu consumo -, entre outras. É esta condição, na qual o capital, para sanar algumas das suas contradições, começa a fazer uso de remédios amargos até para si mesmo – e é isto o que configura, segundo Mészáros, uma era de transição -, que abre, justamente, a possibilidade objetiva para a sua transcendência positiva.[4]
O capital pode, portanto, ser vencido. Para tanto, precisa ser energicamente negado em conjunto, em todos os âmbitos onde faz prevalecer o seu domínio, por todos os grupos sociais que, no interior desse complexo, se encontram numa posição de antagonismo estrutural em relação às personificações do capital. Mas não somente a negação é essencial para uma práxis revolucionária radical e conseqüente. Também a afirmação, nesse processo, adquire profunda importância. É aqui que ganha destaque a proposta mészáriana da igualdade substantiva para a superação da ordem social que, em nossos dias, se sustenta sobre uma miríade de estruturas hierárquicas e discriminatórias.
A igualdade substantiva, assinala o filósofo húngaro, é diferente da igualdade formal assegurada pelo capital. Também não equivale ao "nivelamento por baixo", que muitos acusam o socialismo de querer preconizar. Ela deve ser definida qualitativamente, e não de forma meramente quantitativa. Para melhor explicitar os fundamentos de sua tese, Mészáros recorre a Marx e a algumas das influências políticas do célebre pensador alemão, especialmente François Babeuf e Felippe Buanorroti.
Lemos, então, em O poder da ideologia, que
"A igualdade deve ser medida pala capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas [grifo nosso]. Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores." (BABEUF, apud Mészáros, 2004b, 42)
Tais são os princípios – endossados, segundo Mészáros, por Marx - que definem a igualdade substantiva e que precisam ser afirmados contra a forma de sociabilidade estabelecida atualmente pelo capital. É este, pois, o tipo de igualdade que necessitamos buscar. Não a mera equivalência de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade avaliada pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais. É nisto que se deve basear o projeto alternativo socialista para, na luta de classes, superar o modo de controle sociometabólico do capital e instaurar uma nova maneira, qualitativamente diferente, de intercâmbio e de relação entre os homens e as mulheres e entre a humanidade e a natureza.[5] Leiamos, mais uma vez, o que afirma o filósofo húngaro nesse sentido:
"A natureza da nova forma [isto é, da comunidade humana emancipada] pode ser resumida, citando as palavras de Marx, como um sistema baseado em 'um plano geral de indivíduos livremente combinados'. Isso quer dizer, em termos mais simples, a substituição das cadeias de trabalho impostas pelo capital pelos elos cooperativos dos indivíduos e os vários grupos a que eles pertencem. Por meio dessa mudança qualitativa, eles terão condições de estabelecer uma forma superior e potencialmente muito mais produtiva de coordenação geral do que a que é viável com base no controle externo autoritário da mão-de-obra no sistema de trabalhos forçados do capital." (ibid., 43-4)
Somente o controle social instituído e realizado dessa maneira pode garantir a sustentabilidade das relações metabólicas estabelecidas entre homens, mulheres e a natureza. A sustentabilidade é entendida por Mészáros, nesse contexto, justamente, como o "controle consciente do processo de reprodução sociometabólica pelos produtores livremente associados." (ibid., 44) Ficam definidos, desse modo, os princípios orientadores da práxis capaz de proporcionar tanto a emancipação dos proletários,[6] quanto a emancipação das mulheres – estas lutas, em verdade, não podem mais ser vistas como isoladas uma da outra.
Para fazermos uso novamente das palavras do filósofo húngaro:
"sem mudanças fundamentais no modo de reprodução social, não se poderão dar sequer os primeiros passos em direção à verdadeira emancipação das mulheres, muito além da retórica da ideologia dominante e de gestos de legislação que permanecem sem a sustentação de processos e remédios materiais adequados. Sem o estabelecimento e a consolidação de um modo de reprodução sociometabólica baseado na verdadeira igualdade, até os esforços legais mais sinceros voltados para a 'emancipação das mulheres' ficam desprovidos das mais elementares garantias materiais; portanto, na melhor das hipóteses, não passam de simples declaração de fé. Jamais se enfatizará o bastante que somente uma forma comunitária de produção e troca social pode arrancar as mulheres de sua posição subordinada e proporcionar a base material da verdadeira igualdade." (2002, 303)
Fica descartada, assim, a retórica mistificadora própria à ideologia dos defensores da ordem estabelecida, que defende que a mera "igualdade de oportunidades" dá conta de suprir as exigências concernentes aos problemas da emancipação humana.
O poeta brasileiro Ferreira Gullar, nos tempos em que ainda usava da pena como arma crítica em favor dos oprimidos do mundo, escreveu, sobre os povos da América Latina, algumas de suas palavras mais lúcidas: "Somos todos irmãos/ Não porque dividamos/ O mesmo teto e a mesma mesa:/ Divisamos a mesma espada/ Sobre nossa cabeça." Sutilmente transformado, este poema nos serve para expressarmos sinteticamente o anseio inerente ao presente artigo. E, nesse sentido, se levarmos em conta o fato de que a mesma espada não está assentada apenas sobre a cabeça dos latino-americanos e sim sobre todos aqueles que, pelos mais distantes rincões do planeta, se encontram enredados nas múltiplas estruturas hierárquicas que realizam os imperativos do sistema do capital, teremos uma boa imagem do tamanho do nosso fardo e também da magnitude do nosso desafio.
Se se aperceberem disto, os proletários e feministas conseqüentes de nossa época histórica poderão bem andar de mãos dadas em suas lutas políticas daqui por diante.
Notas:
[1] Com base numa leitura particular dos escritos de Marx e sob a influência dos economistas marxistas norte-americanos Paul Baran e Paul Sweezy – mas com algumas sutis modificações -, Mészáros irá estabelecer a exploração de trabalho excedente – e não meramente a da mais-valia – como elemento definidor do ser do capital. Para maiores esclarecimentos a esse respeito, ver, além do já referido Para além do capital, Baran (1984) e Baran e Sweezy (1966).
[2] Estas são as assim chamadas mediações de segunda ordem do sistema do capital. São, enquanto criações históricas, qualitativamente diferentes das mediações de primeira ordem da atividade produtiva. Tanto em Para além do capital quanto em Estrutura social e formas de consciência (2009), Mészáros apresenta-nos uma lista detalhada dos componentes de ambos os conjuntos.
[3] Por esses mesmos motivos, esclarece Mészáros, nem nos países pós-capitalistas do século XX se logrou superar a verticalidade das relações entre homens e mulheres. A citação da escritora feminista norte-americana Margaret Randall, que a seguir transcrevemos, é bastante ilustrativa de sua concepção a respeito do tema: "Na verdade, nem as sociedades capitalistas que tão falsamente prometem a igualdade nem as sociedades socialistas que prometeram a igualdade e até mais, adotaram a bandeira do feminismo. Sabemos como o capitalismo coopta qualquer conceito libertador, transformando-o em slogan utilizado para nos vender o que não carecemos, onde as ilusões de liberdade substituem a liberdade. Agora me pergunto se a incapacidade do socialismo de abrir espaço para a agenda feminista – para realmente adotar esta agenda à medida que emerge naturalmente em cada história e cada cultura – seria uma das razões pelas quais o socialismo não poderia sobreviver como sistema" (RANDALL, apud Mészáros, ibid., 290). Nesse contexto, deve ser dito também que, para o filósofo húngaro, o fato de as garantias dadas pelo Estado não serem suficientes para assegurar a verdadeira emancipação, não significa que as lutas no interior dessa instância específica não sejam importantes. Elas o são, sim, e devem ser realizadas enérgica e criticamente. O fundamental, contudo, é que esses combates estejam articulados com a formação das mediações extraparlamentares capazes de se assenhorear do controle sobre o metabolismo social humano de maneira consciente e sustentável. É isto que, justamente, configura a proposta da ofensiva socialista estabelecida por István Mészáros ao longo de sua fecunda teorização política. Infelizmente, em virtude das limitações deste texto, não há espaço para uma maior explanação acerca de tais temas. Para maiores informações sobre as complexas formulações do filósofo húngaro a respeito da relação entre o capital e o Estado, da função e da vigência continuada desse sistema nas sociedades do chamado "socialismo realmente existente" (com destaque para as explicações sobre as diferenças entre a extração econômica e a extração política do trabalho excedente) e da impossibilidade de se realizar a emancipação das mulheres no interior desse complexo sociometabólico, remetemos os leitores interessados especialmente aos capítulos 2, 5, 17, 18 e 22 de Para além do capital. De nossa parte, recentemente procuramos dar uma singela contribuição para o entendimento da concepção de Estado em Mészáros através de um breve artigo (2011), que listamos nas referências.
[4] É necessário explicar, nesse contexto, que, de acordo com a teoria de Mészáros, o próprio antagonismo existente na relação entre homens e mulheres configura hoje um dos limites absolutos do capital – os outros três são a contradição entre o capital transnacional e os Estados nacionais, a "eliminação das condições de reprodução sociometabólica", isto é, a contradição entre a necessidade de expansão infinita do capital e a finitude dos recursos naturais e humanos disponíveis, e o desemprego crônico. Os limites absolutos - que ao serem ativados dão início à crise estrutural do capital – são aqueles que só podem ser eliminados pela transformação estrutural do próprio complexo em que se inserem, com a sua conseqüente substituição por outro modo de organização social qualitativamente diferente e viável. São distintos, portanto, dos limites relativos do sistema, isto é, as contradições com as quais se pode lidar dentro da ordem mesma, sem que seja preciso alterar substancialmente seus fundamentos. Aqui, um ponto importante deve ser frisado: a ativação dos limites absolutos do capital e a conseqüente crise estrutural que daí emerge não significam que o sistema esteja em vias de se acabar ou que vá implodir por conta própria. O sistema do capital, nesta conjuntura, continua vivo, mas vivo como um câncer – daí o termo crescimento canceroso utilizado por Mészáros (2004) -, configurando, portanto, uma dinâmica altamente destrutiva e agressiva. É isto que funda, justamente, a atualidade histórica da ofensiva socialista de que fala o filósofo húngaro. Nesse contexto, vale a pena mencionar ainda, a respeito da crise estrutural do capital, que Mészáros tece interessantes considerações sobre as manifestações dessa situação em termos de teoria do valor (e também do antivalor). É impossível, contudo, dentro dos limites deste artigo, aprofundarmo-nos sobre tais questões. Para maiores informações, remetemos novamente os interessados à leitura de Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, especialmente os capítulos 5 e 16. Para uma boa visão das implicações políticas das constatações do filósofo húngaro, é útil ler também Mészáros (2010). Em uma recente pesquisa teórica (2010), realizada junto à Universidade Federal de Santa Catarina, desenvolvemos uma análise detida sobre todos esses temas.
[5] A igualdade substantiva é, enquanto um dos princípios orientadores da estratégia revolucionária socialista, o primum inter pares em relação aos demais - isto é, o "primeiro entre iguais", conforme Mészáros (2008). Em seu magnífico ensaio Socialismo no século XXI - que está contido no livro O desafio e o fardo do tempo histórico (cit.) -, o filósofo húngaro articula, arquimedianamente, tal princípio com outros sete, a saber: o imperativo de se trazer à luz uma ordem alternativa historicamente sustentável, a fim de se superar o enorme desperdício de recursos naturais e humanos levados a cabo pela lógica capitalista do lucro; a promoção da real participação dos "produtores associados", por meio da transferência progressiva a estes do poder de decisão sobre a atividade produtiva; o planejamento, que deve fazer vir à tona um modo de organização social que não agrida as condições materiais de existência e que torne possível a reprodução do gênero humano sobre o planeta numa perspectiva de longo prazo; o crescimento qualitativo em utilização dos produtos do trabalho, para que se possa combater a destrutividade que satisfaz as demandas do capital auto-expansivo; a complementaridade entre os âmbitos nacional e internacional nas lutas pela emancipação humana; a unificação das esferas da reprodução material e da política, que foram separadas pelo capital durante seu movimento histórico auto-constitutivo; e, finalmente, a educação, realizada em meios formais e não formais, como alavanca para se produzir o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas necessários para a realização da nova forma histórica, uma educação que se converta, em última instância, em auto-educação permanente para uma sociedade que supere definitivamente as determinações fetichistas do sistema produtor de mercadorias.
[6] Damos, aqui, ao conceito de proletários, o significado preciso que Mészáros atribui a ele. Partindo da compreensão de que o sistema do capital é uma estrutura de controle hierarquicamente estabelecida sobre o metabolismo social, o filósofo húngaro estabelece que proletário não é somente o empregado da fábrica, mas todo aquele sujeito - empregado ou não, na fábrica ou fora dela - alijado do controle consciente dos processos sociometabólicos da humanidade. Nas palavras do autor de O desafio e o fardo do tempo histórico: "As classes operárias industriais constituem-se, em sua totalidade, de trabalhadores manuais, desde a mineração até os diversos ramos da produção industrial. Restringir o agente social da mudança aos trabalhadores manuais não é obviamente a posição do próprio Marx. Ele estava muito longe de pensar que o conceito de 'trabalhador manual' proporcionaria uma estrutura adequada de explicação sobre aquilo que uma mudança social radical demanda. Devemos recordar que ele está falando de como, pela polarização da sociedade, um número cada vez maior de pessoas é proletarizado. Assim, é o processo de proletarização – inseparável do desdobramento global do capital – que define e em última instância estabelece o problema. Ou seja, a questão é como a maioria esmagadora de indivíduos cai em uma condição na qual perde todas as possibilidades de controle sobre a sua vida e, nesse sentido, torna-se proletarizada [grifo nosso]." (2007, 70)
Referências:
BARAN, Paul. A economia política do desenvolvimento (Coleção Os economistas). São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BARAN, Paul e SWEEZY, Paul. Capitalismo monopolista. Ensaio sobre a ordem econômica e social americana. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966.
CHEROBINI, Demetrio. Educação e política no pensamento de István Mészáros: estudo introdutório. Florianópolis, SC: 2010. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.
CHEROBINI, Demetrio. O mito do Estado como "indutor do desenvolvimento", 2011. Disponível em
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. A globalização capitalista é nefasta. (Entrevista a Brasil de Fato), 2004. Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=3314
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004b.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Princípios orientadores da estratégia socialista. in Margem Esquerda – ensaios marxistas nº 11. São Paulo, Boitempo, 2008, p. 57-69.
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.
MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista. São Paulo: Boitempo, 2010.
Somos mulheres e não mercadoria!!
Vejamos: Adorno disse ...
"Que toda a cultura depois de Auschwitz é um lixo. Funk fala de sexo. Falar de sexo é pornografia. Funk é pronografia. Pornografia não é cultura, logo, funk não é cultura. Ora, por mais que o funk tenha surgido depois de Auschwitz, Adorno não iria concluir que funk é lixo, porque CULTURA é lixo, e funk não é cultura! Será que funk…não é lixo? Nossa, essa autora deve ser uma tremenda funkeira! É isso aí, Iara Quebra-Cara, faça o Bonde do Adorno!!
(Adorei esse comentário) kkk
A nova moral do funk
Mas vem significar também que cultura é a experiência do que sobra para os indivíduos levando em conta as condições socioeconômicas e políticas marcadas pela divisão de classes, de trabalho, de sexos, da própria educação dirigida de maneira diferente a pobres e ricos.
A partir da elevação do lixo à categoria de análise, podemos com tranquilidade ecológica (aquela que faz a separação dos descartáveis por categorias) partir para uma brevíssima investigação daquilo que se há de nomear como “moralina funk”, a performance corporal-sonora que se apresenta como o ópio do povo de nosso tempo.
Muito já se escreveu sobre o fenômeno que merece atenção filosófica urgente desde que se tornou a “cultura” que resta para uma grande camada da população de classes menos favorecidas econômica e politicamente.
Muitos afirmam que “o funk carioca também é cultura”, mas pouco comentam sobre seu sentido como capital cultural justamente porque seu único capital implica uma contradição: pobreza material e espiritual. Ou seja, capital nenhum.
Na ausência desse capital sobressai o que resta aos marginalizados. Eles descobriram o valor daquilo mesmo que lhes resta. Eis o capital sexual.
A performance da moralina funk depende desse capital sexual. Explorado, ele é a única mercadoria da consciência e do corpo coisificado. Seu paradoxo é parecer libertário quando, na verdade, é a nova moral.
Pornografia moralizante
Produto dos mais interessantes da sempre moralizante indústria cultural da pornografia, a esperteza do funk carioca é transformar em regra aquilo que foi, de modo irretocável, chamado por seus adeptos pela categoria do “proibidão”. A versão da coisa que não é para todo mundo.
A fórmula do funk é tão imbatível quanto a lei do estupro das histórias do Marquês de Sade. É o barulho como poder, ou melhor, violência. Nenhum ouvido escapa da moralina funk na forma de disfarçadas ladainhas em que as mesmas velhas “verdades” sexistas se expõem, como não poderia deixar de ser, pornograficamente.
A economia do proibidão
Mandamento sagrado da performance é que ninguém ouse imputar marasmo ao tão cultuado quanto profanado Deus Sexo.
Não existe uso da pornografia autorizado, pois a regra de sua moral é a clandestinidade. Daí a função do proibidão na economia política do funk. A história da pornografia oscila entre ser o outro lado da lei e ser apenas outra lei.
Foi isso que fez seu sucesso político em sociedades autoritárias contra o princípio publicitário que lhe deu origem. É o que está dado em sua letra: porno (prostituta) e grafia (escrita) definem, na origem, a mulher que pode ser vendida. E que, para ser vendida, precisa ser exposta.
A pornografia é, assim, uma espécie de exposição gráfica da mercadoria humana. Não é errado dizer que a lógica que transforma tudo em mercadoria tem seu cerne na “prostitutabilidade” de todas as coisas. Nada mais simples de entender em um mundo de pessoas confundidas com coisas.
Que a pornografia esteja ao alcance dos olhos, dos ouvidos, de todos os sentidos, exposta em todos os lugares, significa apenas que a regra do ocultamento foi transgredida. Mas implica também sua efetivação como publicidade universal. Isso explica por que ela não choca mais.
Na performance do funk carioca ela é altamente aceita em escala social. Seja pela pulsão, seja pela acomodação, se o imoral torna-se suportável é porque ele tomou o lugar da moral. É a nova moral.
A pornografia de nossos dias é tão bárbara quanto a romana pornocracia, com a diferença de que não temos mais nada que se possa chamar de política em um mundo comandado por regras meramente econômicas.
Daí que todo funkeiro ou seu empresário saibam que seu negócio é bom pra todo mundo.
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Comentários (80)
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Vincent Rosenblatt |
Em “A nova moral do funk”, a argumentação da filósofa Marcia Tiburi gira em torno de um erro semântico: o que se designa como Proibidão corresponde ao subgênero de funk carioca cuja denominação correta é Putaria. É possível que aquilo de que ela fala não exista.
Interessados podem ler a resenha deste texto da Marcia Tiburi por Carlos Palombini / UFMG aqui :
http://www.riobailefunk.net/pt/2011/12/12/mora-na-filosofia-putaria-e-lixo/
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Sobrevivente de Auschwitz |
Mora na filosofia: Putaria é lixo. Ludwig Wittgenstein afirma nas Investigações filosóficas que “uma nuvem inteira de filosofia se condensa numa gotinha de gramática”. Em “A nova moral do funk”, a argumentação da filósofa Marcia Tiburi gira em torno de um erro semântico: o que se designa como Proibidão corresponde ao subgênero de funk carioca cuja denominação correta é Putaria. É possível que aquilo de que ela fala não exista: da “performance corporal-sonora” descartada, não se dá a conhecer nenhuma música, nenhuma letra, nenhum artista, nenhum evento, plateia nenhuma. Também não se leva em conta a história dessa música, sua teoria, o que ela possa representar para quem a produz, faz circular, consome, vive. Tampouco entra em jogo a relação problemática da música funk carioca com a ideologia. “Há mais coisas no céu e na terra do que sonhadas em tua filosofia”, diz o Príncipe da Dinamarca. Uma delas é a música. Outra, sua literatura.
http://www.riobailefunk.net/pt/2011/12/12/mora-na-filosofia-putaria-e-lixo/
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moralina tiburina |
Triste ver o Adorno servindo de adorno.
Márcia, se tu respeitas teu título de fílósofa, vai dar uma lidinha antes de falar bobagem. Vou te passar uns sites, tá? Aí tu lês e fica mais instruída e para de empobrecer a rede com essa “moralina tiburina”:
http://www.riobailefunk.net/pt/2011/12/12/mora-na-filosofia-putaria-e-lixo/
(esse é pra entenderes o teu erro semântico)
http://lasa-2.univ.pitt.edu/LARR/prot/fulltext/Vol43no2/03_43.2sneed.pdf
(esse segundo aqui é pra reveres teu conceito de pobreza material e espiritural)
Abraço e boa instrução
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lucas galon |
caros, muito interessantes todos os textos indicados nas respostas, mas discordo da reação – talvez o problema semântico tenha mais a ver com a definição de “cultura” do que de “proibidão/putaria…
De resto, penso assim: o que seria de um grande filósofo como Adorno, se sua filosofia fosse olhada apenas por esta ótica historicista, que a circunscreve ao fenomeno temporal específico da sua criação? Prefiro os textos que de alguma forma (posso ou não concordar com seus pressupostos) apostam no carater re-semantizador da filosofia pelo que ela tem de alcance, por assim dizer, atemporal…neste caso, o texto da Tiburi é mais interessante…
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Luciano Cesar Morais |
Acho o artigo resposta de Palombini execrável. Ele simplesmente não entendeu que o artigo da Tiburi é justamente de denúncia contra a apropriação do funk por um mecanismo que preserva desigualdades, reafirma preconceitos, reforça sistemas de exploração cultural. O humano é tratado como utilitário e todo o utilitário tem seu refugo. Esse refugo, o lixo, só pode ser outros humanos e assim escolhe-se (sim, escolhe-se pela periferia o que ela poderá ouvir/ler) não só a parcela da população a ser tratada como lixo (os negros e pobres, basicamente) como dá-se visibilidade a esse prêmio que preserva a desigualdade de acesso a cultura. Além do texto ser pretensioso, confessa a ignorância falando demais antes de pensar no que realmente está sendo dito pela autora. Bom dia aos cavalos…
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CARLOS EDUARDO |
Ola Senhorita Marcia, eu queria saber por que os jornais, os canais de TV, sites, quando falam do funk, só falam do lado ruin do funk, por que nunca falam do funk do bem, de elite, queria muito que a senhorita me ajudasse a entender isso por que parece que todos querem que o funk seja reconhecido por esse lado ruin, concordo com a senhorita em algumas coisas pois sou um dos que lutam contra esse tipo de música “PUTARIA”, “PROIBIDÃO” mas eu queria saber o por que ninguem mostra o meu estilo (kadu e as Gatinhas), essas são algumas músicas minhas: Deixa a gatinha dançar, No jump, Ela é DG, eu ja falei deixa a gatinha dançar, Eu Aprontei e outras, e tem alguns artistas, Mcs que tambem são do mesmo estilo do que eu, como: MC Bruninha, Bochecha, MC Marcinho, Anitta, Marcio G e outros, até peço ajuda a senhorita para que eu posso entender o por que que não mostram esse lado bom do funk e se quizer estou a disposição da senhorita para exclarecer qualquer dúvidas, abraços e fica com Deus!!!
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Rubens Russomanno Ricciardi |
cara Profa. Marcia Tiburi, parabéns por mais este teu texto brilhante, e me faz lembrar do Jean-Luc Godard, quando afirmou que “a cultura é a regra e a arte é a exceção” e que a “cultura quer aniquilar com a arte”, portanto, se o funk é essencialmente cultura (como de fato o é, aliás, mera indústria da cultura), está claro que qualquer tentativa de valorizá-lo só pode ser contrária aos fundamentos da arte, digo, da “grande arte”, como aliás, diria Heidegger (que no fundo era não só leitor como admirador de Adorno, só não declarava em público porque era orgulhoso, por outro lado, o Adorno também era leitor e admirador do Heidegger, só dizia o contrário em público porque tinha pouca coragem rs rs rs)… abs RRR (PS: faço aqui à “pouca coragem” de Adorno uma homenagem póstuma à saudosa Stephanie, viúva do Eisler, foi ela quem me ensinou sobre esta característica pessoal do Adorno).
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Bruno "Ruivo" Ladvocat Cintra |
O artigo da autora não é sobre funk. Se algum marciano descesse à Terra sem saber o que é funk e lesse esse texto, continuaria sem saber o que é funk, mas saberia que a autora não sabe argumentar. Noves fora o que é funk, o que é Lady Gaga, o que é Miles Davis, ou o que é Wagner, o fato é que nada de substantivo pode ser inferido do artigo porque ele não expõe nenhum raciocínio, apenas decreta premissas e tenta encadeá-las à base de silogismo. Isso qualquer néscio consegue fazer, até para provar o contrário do que apregoa a a autora. E a partir das mesmíssimas premissas! Vejamos: Adorno disse que toda a cultura depois de Auschwitz é um lixo. Funk fala de sexo. Falar de sexo é pornografia. Funk é pronografia. Pornografia não é cultura, logo, funk não é cultura. Ora, por mais que o funk tenha surgido depois de Auschwitz, Adorno não iria concluir que funk é lixo, porque CULTURA é lixo, e funk não é cultura! Será que funk…não é lixo? Nossa, essa autora deve ser uma tremenda funkeira! É isso aí, Marcia Quebra-Cara, faça o Bonde do Adorno!!
Mas vamos supor que a autora seja paga para fazer uso de silogismos sem raciocínio; talvez seu patrão seja um tirano, não a julguemos. Mesmo assim, num texto cheio de premissas categóricas, bastaria UMA exceção a qualquer premissa para desmontar a sua tese. E não faltam exceções: nem todo funk é proibidão; proibidão fala sobre guerra de gangues, não de sexo; tudo que se cultiva é cultura, seja ou não palatável para o NSDAP ou para a autora, etc. Dá pra ficar o dia inteiro aqui. Mas comecemos pela primeira afirmação categórica da autora: “a afirmação adorniana de que após Auschwitz toda cultura é lixo não perde sua atualidade.” Não é nem uma questão de se achar uma exceção, a premissa como um todo é falsa sob critérios objetivos. Por um motivo prosaico: está errada a suposta afirmação “adorniana” (Mon Dieu! Não poderíamos chamá-la de “A afirmação de Adorno” sem sermos caçoados por nossos pares do clube privê de beletristas? Será necessário falar “adorniano” para encantar esses leitores tão sedentos por um copo de pedantismo de tanto suportar a moléstia filistina do obscurantismo funkeiro dessa Babilônia trópico-urbana?)
A afirmação adorniana é a seguinte: “a crítica da cultura se confronta com o derradeiro estágio na dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema depois de Auschwitz é barbárico e isso corrói também a compreensão em que expressa por que se tornou impossível escrever poesia hoje.” Se essa afirmação adorniana for levada literalmente–o que é um problema, até porque está na conclusão de um ensaio, e não na declaração de tese de um trabalho científico–que ao menos seja reconhecida na sua literalidade. Até para ninguém cometer a impropriedade de intercambiar “poesia” por “cultura” e “barbárie” por “lixo”. Não importa o que o “funk” seja, sempre será mais fácil associá-lo a Lady Gaga, Miles Davis, ou Wagner do que associar Marcia Tiburi com Adorno.
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Helaine Mangeli |
Lembro com se fosse hoje a primeira vez que cantei na minha comunidade. Em minhas maos estava o meu sonho, materializado num pedaço de papel rabiscado. Esse sonho me levou longe…… cantei com Reis e Rainhas . Hoje o baile funk de comunidade e’ realizado de maneira clandestina e se tornou marginalizado por falta de atencao das autoridades. Hoje pessoas capacitadas lutam para o reconhecimento do maior movimento Jovem do País. Essa semana li’ uma reportagem numa revista renomada de Sao Paulo ESCULHAMBANDO o Funk. Uma antropologa ,Filosofa , Doutorada em nao sei o q….. me surpreendeu, chamou o funk de lixo pra baixo.
Infelizmente todo estudo, todos os livros, todas as aulas para esta pessoa foram em vao. Na escola aprendi a respeitar e aceitar as diferenças do próximo desde o jardim de infancia. Na minha comunidade aprendi a sonhar. Em casa aprendi a amar. E na Vida aprendi que toda forma de manifestação preconceituosa deve ser abominada. Mc Leozinho
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Marco Costa |
Sempre haverá defesa possível para qualquer coisa. Não há políticos que conseguem explicar e justificar o dinheiro na cueca?
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Sobrevivente de Auschwitz |
Quem leva a sério filosofia em 17 parágrafos de 3 linhas? Se os parágrafos fossem um pouco mais curtinhos, ela poderia ter bancado a Susan Sontag subtropical e escrito “Notes on Funk”. O texto não tem lógica (vide supra), é cheio de clichês e não consegue nem ser altissonante. É admirado por quem, de Adorno, só dá pitada. Filosofia de massa.
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moralina tiburina |
Então o funk é “essencialmente cultura” que não se eleva a “grande arte”? Típica ideologia não revisada, arcaísmo posrenascentista. O que é grande arte pra ti Russomano? Beethoven? Bach? Que nome alemão que pode te colocar acima do que consideras gentalha? A grande arte tem que ser legitimada na Globo News pela Maitê Proença e suas colegas? Também pode ser feita por brasileiros, desde que obedeça à “grande arte”…
Essa discussão míope sobre a arte permanece fazendo a manutenção de asssimetrias: essencializar a cultura para desnivelar é um golpe velho usado pelas elites, Sr. Russomano. Desvalorizar o funk pra valorizar os “gênios” produzidos pela cultura do século XIX é uma constante na discursália pseudo-filosófica. Mas Márcia não sabe a diferença entre “putaria” e “proibidão”. E tentar essencializar o que não se conhece, fica difícil.
Filosofia de massa, como disse o Sobrevivente de Auschwitz, além de elitista: A exclusão e a coisificação do corpo se dá justamente na carolice da moralina tiburina exposta no Saia Justa (opa! Saia justa pode, tiburina?)Pela lógica tiburina, deveríamos todos juntos cantar apenas cantos gregorianos, aí suprimíamos o capital sexual e ficaríamos só com o espiritual, além de mistificar o corpo, não é?
Em tempo: o Heiddeger não só era admirador de Adorno, como do regime nacional-socialista alemão, ou nazista, como queiram chamar (confiram seu discurso de 1933).
O próximo passo é renovarem a ocupação das favelas usando a moralina tiburina. É… fiquei lembrando do filósofo do filme Doggville, lembram? Márcia Tiburi é nosso Tom Edson em versão cruel. Se, pelo menos enquanto Grace (Nicole Kidman) era violentada, havia uma certa complacência em sua filosofia de boteco e em sua falta de ação, aqui vemos o contrário: um certo apoio ao regime que clandestiniza e aos essencialismos assimétricos. Enquanto isso, nossa Grace/povo é violentada e qualquer expressão é coisificação e falta de capital espiritual.
Não é mole!
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Marcelo P. |
É uma pena ver como parte do cenário decadente da música de academia (e não é daquelas putz, putz) costuma se portar: favorável aos usos conta gotísticos e vazios de fiolosifas desconhecidas, porém ruminadíssimas (vai entender o paradoxo…) por arautos de uma “cultura” inexistente.
P.S.: Parece que o Luciano foi o cavalo que recebeu o bom dia feito um coice.
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Lúcia Terra |
Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela
Adolf Hitler
Senhora Hitler,é som de preto de favelado mais quando toca ninguém fica parado.
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MC LEOZINHO |
OPORTUNIDADE
O pancadão vai sacudir
Deixa o teu corpo balançar
Quem é do funk vem se divertir
Quem não é pode vir, pode chegar
Os pequeninos dizem por aí
Querem crescer só pra virar MC
Querem cantar, e o que tem demais?
São da favela e querem pedir a paz
Dizem aí que é apologia
Mas não é não, é simplesmente o dia-a-dia
Vivido na comunidade
E o “neguim” só quer oportunidade
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Igor Reyner |
Depois de ler este texto desconsiderável e assistir a este arremate:
http://www.youtube.com/watch?v=_KfbL8Kt3-w&feature=youtu.be
Acredito que a única coisa que poderia declarar já foi declarada por William Blake, repito:
“Como o ar para o pássaro ou o mar para o peixe, assim é o desprezo para o desprezível”
Grato.
P.S.: É uma pena que ela conquiste apoio de qualquer setor do meio musical (o meu meio) brasileiro. Completa decepção com alguns professores que postaram, vergonha.
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Rubens R. Ricciardi |
Oi Moralina Tiburina, por que vc não assina com o teu nome de verdade??? um verdadeiro Ombudsman sempre tem nome e sobrenome!
vou responder naquilo que vc me citou:
“O que é grande arte pra ti Russomanno? Beethoven? Bach?”
claro, vc se esqueceu do Manuel Dias de Oliveira, do Alexandre Levy (grande inventor do samba!), do Villa-Lobos, do Gilberto Mendes, enfim, todos estes são compositores de uma grande arte! (já por exemplo, o Lobão ou o Cazuza, ou Xuxa, Padre Marcelo etc. tudo isso é indústria da cultura).
vc fala de “elite”, Moralina????? coisa de elite são os shows quase sempre caríssimos de indústria da cultura. Por exemplo, aqui na minha cidade, Ribeirão Preto, este marketing cultural do show biz aluga sempre os melhores espaços, mesmo aqueles de boa acústica natural onde sequer se necessita amplificar o som (como é o caso do excelente Theatro Pedro II daqui, por exemplo, uma tristeza como maltratam o teatro), aí vem aquelas caixas de som enormes com reprodução invariavelmente barulhenta do som – é isso que Adorno chamava de desartização da música, muito barulho pra pouco conteúdo! – já os nossos concertos sinfônicos ou de câmara são sempre gratuitos, portanto, são projetos absolutamente populares, no sentido de que todos têm acesso fácil e imediato a eles! ou seja, há muito mais elite na indústria da cultura do que na música de concerto. E olha que nós sempre tocamos tranquilo (sem sensacionalismo, sem show, sem pulação, sem luzes nem efeitos especiais). É pra se ouvir música de maneira concentrada enquanto música. Ou como dizia Heidegger, “só ouvimos de fato quando somos todos ouvidos”! E de maneira bem simples, como já disse, sem muita parafernalha, com recursos infinitamente menores… A gente da arte da música vem de baixo, já a indústria da cultura é que vem de cima (precisa se aliar o som musical sempre a um visual de grande happening, algo invariavelmente apelativo… a gente não precisa de nada disso, daí nossa música ter que ser de fato mais exigente, pois as pessoas vão lá pra ouvir música, não pra “bombar” (desculpa a expressão de mau gosto) num show!
vc disse ainda “Desvalorizar o funk pra valorizar os gênios produzidos pela cultura do século XIX é uma constante na discursália pseudo-filosófica”.
Eu não penso de acordo com o século XIX, eu penso de acordo com Heráclito, que dizia “um, dez mil, se for o melhor”, bem como Heráclito já dizia “a massa está empanzinada como o gado”! Como todo bom filósofo, Heráclito era também profeta, pois escreveu no século VI antes de Cristo e seus fragmentos continuam atualíssimos! Parece que ele está falando da indústria da cultura – esta invenção do século XX que já deu o que tinha que dar (um dia a ficha vai cair e como toda distorção ideológica a favor de uma estrutura de poder, a indústria da cultura também ruir!… – e acho sim que a arte de verdade, por ser um fundamento da história, vai conseguir sempre sobreviver). Ou vc quer dizer que qualquer atitude proponente ou afirmativa em matéria de arte é mero romantismo???? Como vc é excludente! – eu não posso ter sequer opinião??? Lembre-se que Platão entendia a doxa como processo imprescindível para a episteme! – Poxa, mas se tudo isso é mero romantismo (daí vc ter colocado “gênio” assim entre aspas, suponho), aí eu tenho que dar realmente razão pra vc, pois sou mesmo um romântico incorrigível, adoro idéias de verdade, propostas de arte e de filosofia que fazem a gente ser imediatamente diferente, adoro Heráclito, adoro Bach, adoro as tragédias de Eurípedes, adoro Dante Alighieri, adoro Brecht, adoro todos estes e demais românticos de todos os tempos!
vc disse também: “Em tempo: o Heiddeger não só era admirador de Adorno, como do regime nacional-socialista alemão, ou nazista, como queiram chamar (confiram seu discurso de 1933)”.
Vc está generalizando um curto momento na vida de Heidegger (que sempre esteve inclusive muito próximo a tantos judeus e comunistas e de maneira mais íntima – leia, por exemplo, o que a Hannah Arendt – e olha que ela entendia alguma coisa de totalitarismo, não é mesmo? – escreveu sobre Heidegger num de seus últimos textos, quando ela – justamente ela! – o trata como o grande filósofo do século XX). Heidegger ficou um tempo muito pequeno no partido e bem no início, e ele queria na verdade criticar a modernidade, achou que os nazistas tinham algo de recuperação daquilo que ele entendia por Dasein. Bom, está claríssimo que foi um equíovoco terrível de Heidegger, ou seja, ele errou feio na leitura do que seria o nazismo. Mas como dizia Lênin, o “homem inteligente não é aquele que não comete um erro, mas sim aquele que o corrige rapidamente”. E eis que Heidegger deixou em menos de um ano seu posto de reitor em Freiburg e se afastou totalmente do nazismo – ainda mais quando Heidegger percebeu que o nazismo é na verdade o grande triunfo do terror tecnocrata (e isto era o que Heidegger justamente queria combater na modernidade!). Vários autores, como o Prof. Ernildo Stein, esclarecem este ponto. Indico, portanto, o Prof. Stein da UFRG pras suas próximas leituras! Não se pode culpar unilateralmente o Heidegger naquele contexto, pois vários grandes homens caíram na sedução de Hitler nos primórdios de seu programa, como Anton Webern, por exemplo. Lembre-se que os nazistas consolidaram ainda o projeto de inventar a cultura popular iniciado pela igreja no final do século XIX. E os nazi-fascistas (muitas das idéias originais vinham de Mussolini) eram muito competentes em propaganda e marketing (mesmo porque eles inventaram de fato o marketing e a propaganda moderna!). É por isso que o Adorno disse certa vez que Auschwitz é igual a Hollywood, é por isso que a essência do nazismo está bastante presente ainda na indústria da cultura mesmo ainda em nosso século XXI, vc quer exemplos?????? Portanto, não confunda Heidegger, que tem a ver com a compreensão do que é arte (leia o texto dele, “A origem da obra de arte”, muito bom!), com o nazi-fascismo, que, por sua vez, tem a ver com a indústria da cultura – não é por menos que Berlusconi adora (ou adorava) tanto citar frases inteiras de Mussoluni…
abraços a vc e agradeço pela atenção, bem como pela troca fecunda de idéias!!
Rubens Russomanno Ricciardi
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Uther Pendragon |
Pra mim essa professora continua escrevendo filosofia de buteco, serve ao seu patrão que elegeu uma manifestação de uma parcela da população restrita a um espaço urbano limitado como cultura. Na verdade não vale nem a pena comentar esse monte de bobagem que essa dona teima em escrever.
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Dodge Mann |
Os comentaristas deste texto citam filósofos. Citam passagens de tratados estéticos, citam os mais diversos intelectuais, doutores, críticos. E tudo para desmontar a crítica rasteira de uma filósofa. Tanto esforço da rapaziada para sair em defesa de um gênero musical vagabundo, chulo, piegas e que pretensamente revolucionou o modo como as classes sociais menos favorecidas se expressam. E eu achando que o samba de roda baiano da metade do século XIX, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, já havia feito todo o caminho transgressor, libertador e crítico, dando origem a maior manifestação musical e social carioca, o samba, tivesse feito todo o serviço, Obrigado amiguinhos que me mostraram que o Funk Carioca que é o tal. Esse impiedoso redentor do homobrasilis.
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Mora na filosofia: Putaria é lixo - proibidão |
09/01/2012
[...] filosóficas que “uma nuvem inteira de filosofia se condensa numa gotinha de gramática”. Em “A nova moral do funk”, Cult 163, novembro de 2011, a argumentação da filósofa Marcia Tiburi gira em torno de um [...]
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Rubens Russomanno Ricciardi |
26/01/2012
caro Dodge Mann, vc disse “samba de roda baiano da metade do século XIX”, por favor, me passa o nome de um autor, o título de um samba ou mesmo qualquer fonte desta época (fonte primária histórica, por favor) que indique de fato um samba enquanto gênero musical anterior a 1890!!! Caso vc não tenha isto em maõs, continua valendo o pioneirismo do paulistano Alexandre Levy (inspirado num poema de Julio Ribeiro), cujo “Samba” (na verdade um lundu sinfônico) é justamente de 1890… agradeço o retorno!
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Armistrong Souto |
21/02/2012
Funk? Não seria: Fuck? Pois, não passa disso. É tão pobre, tão raso, tão lixo. Estou indignado comigo por haver perdido meu tempo enviando este comentário. Cultura? Hahahahah. Façam-me rir!
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rodrigo sem nome completo |
03/03/2012
Recomendo que reze esta oração antes de dormir, Márcia:
“Que o Céu nos livres dos primeiros romances que são escritos porque um jovem aspira ao prestígio de ser romancista e não porque tenha algo a dizer!
Que o Céu nos livre, igualmente, dos ensaios matemáticos que sejam corretos e elegantes, mas destituídos de corpo e espírito.
Que o Céu nos livre, sobretudo, do esnobismo que não somente admite a possibilidade desse trabalho apoucado e maquinal, mas deblatera, com espírito de arrogância depreciadora, contra a competição de vigor e ideias, onde quer que se possam encontrar”!
(Wiener, 1950)
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Lira Dolabella |
03/03/2012
O academicismo é o senso comum da academia. Essa menina, com todo o seu moralismo elitista – a intelectualidade classe média – faz parte do grupo “acadêmicos do senso comum” (grande sucesso na mída não massiva, atenção, não massiva). Mas dessa vez eu acho que ela estava fora do juízo, talvez cheia de anti-depressivos na cabeça. Insônica por dilemas que o analista não conseguiu resolver (não são todos os mortais que chegam lá, né?).
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Leviatan Humano |
24/03/2012
Concordo com a Srta. Marcia Tiburi,
Como deve aceitar que funk deva ser considerado uma forma de expressão positiva, canções onde a exploração sexual é escancarada e que não fogem dos ouvidos de ninguém. Essa pornografia livre para que todos devam participar é imposta (digo isso pq moro em uma) na favela. Culturalmente imposto na comunidade o Pancadão, Proibidão ou Putaria, impõe suas regras de aceitação, não permite outras manifestações na periferia.
Aos Mc’s
Vou comer sua b
Vou fu o se c
Me digam onde esta a arte nisso?
Abraço a todos
Parabéns Srta. Marcia Tiburi
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gley barbosa |
29/05/2012
A reciclagem do lixo Tiburiano.
Pós Marcha das Vadias me sinto liberta suficiente para falar de um assunto que me incomoda.
Já ouvi muitas vezes sobre a relação do Funk e a degradação do corpo da mulher… Críticas quanto a falta de consciência social inserida no contexto do funk são recorrentes…
Até ouvi que ele era o “lixo( o resquício de revolta) da favela que chegava aos narizes da burguesia” . Depois da última, a obrigação de manifestação enquanto mulher oriunda de periferia foi de tirar o sono, literalmente!
Ai fiquei refletindo acerca de manifestações musicais que têm um cunho social em paralelo
-me veio o Punk, na cabeça…
O Punk surge na classe baixa inglesa como uma das respostas a crise do capitalismo do pós-guerra. Crise essa que custou desemprego e exploração ainda maior daqueles que não podiam exigir muito do mercado; afinal era muito mais justificável não respeitar direitos trabalhistas para mulheres, negros e etnias menos favorecidas do que para o homem branco. Pelos motivos “óbvios” do patriarcado branco, nosso veeelho conhecido. Esse mesmo Punk é marcado pelo principio do “faça-você-mesmo” que grita contra a elitização da música e dialoga harmonicamente com filosofias niilistas.
Daí voltando ao Funk, fazendo uma analogia percebo que há sim fatores comuns. A política do “todos podem fazer”, as origens em classes baixas, e a questão política….?
Pois é, concordo em partes com o argumento da degradação. Quando a mulher se encontra numa situação de exposição do seu corpo como objeto de manobra masculino, isto de fato é um problema. Pois sua imagem é coisificada PELO homem e para o prazer do homem.
Mas percebo em outra medida que no momento que são as mulheres donas das suas letras de funks, e que por meio dessas, questionam a submissão ao trabalho doméstico e a prisão da liberdade sexual da mulher. Os princípios de segmentos feministas estão ai tão presentes quanto na queima dos sutiãs.
A sociedade está a todo tempo crucificando a mulher do funk que se expõe, que goza, que anseia liberdade dentro da sua cultura. Essas mulheres sobem em um palco e gritam que são putas e não querem ser mais “as empregadinhas”.
A lógica é simples: Se é pra nos tratar como coisas, nós seremos coisas. Mas coisas de nós mesmas. Meu corpo pode até ser um objeto de consumo, mas ele é meu. Eu vou vendê-lo do jeito e pra quem e quando EU quiser.
Se este não é o feminismo ideal (se é que ele existe) construído dentro da academia, na periferia ele significa a possibilidade de se sofrer um estupro corretivo ou ter os seios cortados enquanto se espera o ônibus na parada ao lado de casa. Penas,possíveis, para aquelas que se “comportam” como homens ou por não quererem transar com determinado individuo do sexo masculino quando este acha que ela é puta, vadia ( e todas aquelas denominações que eles nos dão, quando a gente dá pra quem queremos).
“Resquício de revolta?lixo?”…..o que vocês acham minhas caras?!
Realmente, Simone de Beauvoir não é a autora de livros de cabeceiras das mulheres da classe baixa (muitas vezes nem das mulheres de classes altas e medias). Por diversos motivos:
analfabetismo, educação ruim , falta de possibilidade de comprar o livro com o salário de merd… que recebem, falta de tempo.
Porque!? A realidade, a cultura da classe baixa é diferente das demais assim como o caso das mulçumanas que quando dirigem correm até risco de vida e mesmo assim estão lá marcando suas posições como feministas.
A construção do feminismo em cada cultura foi marcada pelos seus degraus de ascensão
com a nossa não vai ser diferente.
Concluindo meu desabafo espero não ouvir “analises” preconceituosas de pessoas que não fazem ideia do que é viver na periferia , principalmente porque querendo ou não hoje faço parte desse mundo “Cult” que a universidade nos insere e que tem coisas muito legais mas que volta e meia encontramos uns e outros com discursos rebuscados mas preconceituosos.
E agora não só sinto que tenho o direito de descer até o chão, mas tenho dever para com os meus princípios, no entanto isso não dá o direito de ninguém achar que minha vontade deve ser desrespeitada.
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Cleusa Rizério |
06/06/2012
Caríssima Márcia Tiburi, vejo que suas incursões nos mais variados e contemporâneos temas sociais, sexuais, musicais, e todos intrinsicamente ligados filosoficamente, pois o simples pensar e existir resulta como premissa uma filosofia.
O seu texto está belissimamente escrito e argumentado pois o olhar de uma filósofa sobre uma realidade transparente, é tão verdadeiro como o olha de outra pessoa qualquer, simples, sem instrução formal mas com lógica e pensamento firme de como realmente a cultura/arte, ou mais especificamente sobre o funk aqui retratado pela professora, nos remete a concordar com o escrito pelo simples fato de conseguirmos enxergar nele a coisificação, o sexismo vulgar sobre a mulher e por aí vai.
Uma observação pessoal e vai aí como um reforço para que você continue se colocando sempre sobre os variados temas, é que de suas opiniões atingem e incomodam muito alguns que não tiveram a mesma oportunidade de mídia e transparência que a professora conseguiu. Parabéns e não se incomode com a oportunidade de ágora e de palco que sua inteligência provoca.
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Silvia Maria |
07/06/2012
Prezada Márcia.
Gosto muito do que você escreve. É uma visão lúcida da realidade, que a academia não deixou que ficasse nublada pelas múltiplas visões de teóricos. À você, estas diversas interpretações caem bem, pois se somam às suas. Em outros, mostram que determinadas pessoas não conseguem enxergar um palmo além dos livros que leem, sem apropriar-se dos conhecimentos e agregá-los à luz própria e compará-los com a realidade.
Concordo com a Cleusa Rizério. A sua inteligência provoca e incomoda.
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Val Pessoa |
14/06/2012
Boa Noite,
Excelente espaço para filosofar!
Vou adicionar o que é obvio ao tópico, toda classe social, já que a sociedade em geral gosta de ser diferente…
…os consumidores desta tal pornografia “proibidão”, recebem de uma forma que podem tanto aceitar ou não todos temos barreiras que podemos utilizar e bloquear…
…A periferia pode consumir tanto essa pornografia como “uma pornofrafia mais sofisticada” uma parte do sertanejo que está na modinha, que usa palavras menos violentas ou sinceras e fortes como o proibidão…
Assim como o proibidão a modinha sertanejo e antiga modinha axé, usam gestos sexuais, subliminares, que para as pessoas fala mais que as palavaras forte do proibidão, pois em qualquer pais, gestos conseguem ser interpretados facilmente, sendo assim, todas as classes precisam consumir algo…
A periferia não é a única “classe”/local que recebe pornografia que agride, ela está em todo o lugar, de formas desfarçadas, mais sutis, delicadas.
Abraços!!!
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cristina |
19/11/2012
Não sou da favela do Rio. Mas sou obrigada a ouvir essas “batidas” (desculpem-me os fãs, mas é o máximo que se pode dizer desse gênero. “música” seria exagero). Não fui criada para ser preconceituosa; meus pais simplesmente me ensinaram que eu deveria refletir sobre o que eu escolho para mim. Ao me deparar com o Funk – admito que algumas vezes seus autores procuram passar uma mensagem, o que é bom e deveria acontecer com todos eles – me coloquei a pensar, porque uma garota de 14 anos (às vezes menos) se presta ao papel de rebolar até o chão sendo chamada de puta ou de cachorra? Ela não tem um marido opressor de quem quer se libertar, não tem nem vida sexual (ou pelo menos não deveria ter, até ser formada mentalmente para isso.). Então eu pergunto: onde está a cultura, a demonstração de pensamento nisso? Onde está o valor em frases nojentas como “rebola na p*ca?” E aquele outro, que fez tanto sucesso, o tal de Créu? Se é para fazer uma música que não seja “de elite”, que faça, mas ao menos faça isso direito. Só porque não é de elite não tem que falar nada de bom? Infelizmente isso não acontece apenas com o funk, tem acontecido com o sertanejo, com o axé, com o forró… Todos os ritmos que são feitos para as “classes baixas” não tem conteúdo intelectual. Será que é porque eles acham que pobre só entende e só gosta de porcaria? Isso é um preconceito e as pessoas deveriam perceber isso, ao invés de engolir essas baboseiras e ainda achar ruim quando alguém fala mal.