Relações Afetivas e as Mulheres Negras: novas linguagens hão de ser sentidas
Poucas coisas tocam tanto a variadas pessoas quanto discussões sobre romances. Isso talvez por esse tema nos remeter à sexualidade e à família, temas vistos como muito importantes por quase tod@s em nossa sociedade. Filmes, programas de TV, literatura, histórias imemoriais, há muito que se contar sobre isso. Muito se fala sobre romantismos e anti-romantismos, todavia, um ou outro pólo não explora a infinidade de elementos envolvidos em relações dessa natureza.
Se é sabido que todas as pessoas do mundo não se comportam da mesma maneira, no assunto aqui tratado não seria diferente. Falando aqui do grupo social de pele negra, é notório que, apesar da grande variedade que abriga, são pessoas desconsideradas em sua origem cultural e em suas características, com um passado e um presente de dificuldades e privações, contudo, de resistência e criatividade, é sempre bom destacar.
Imaginem a maneira de se comportar diante da escravização, da discriminação, de diversas formas de violência. Bell Hooks, mulher negra, ativista e escritora norte-americana, fala em um de seus escritos, que a escravização e seus efeitos impactaram profundamente o ato de amar, isso se deu tanto da parte do grupo negro, quanto da parte dos outros grupos raciais que com ele vêm se relacionando (ou negando se relacionar!). A desumanização da pessoa negra, infelizmente até hoje em operação, impacta a sociedade como um todo e cria formas e formas de vínculos. Se mulheres de todas as cores são discriminadas pelo machismo, se negr@s de todos os gêneros são discriminad@s pelo racismo, é de se considerar a junção de discriminações que carregam as mulheres negras, sem contar as tantas outras marcas que na vida carregamos.
Quem nunca se questionou pelo fato de as mulheres consideradas bonitas na televisão/cinema serem quase sempre brancas ou com traços próximos a isso? Qual a razão de em nossa sociedade as musas da poesia, da música e das artes em geral, retratarem positivamente só tipo e cotidiano da ?delicada? mulher branca, retrato que em quase nada retrata a vida das negras? As mocinhas, as mulheres consideradas ?dignas?, as princesas, bonecas e demais figuras formadoras dos padrões e gostos serem majoritariamente brancas e tudo que remete a negritude ser considerado feio, impuro, animalizado?
E por qual motivo as piadas, cantadas e outros ditos populares, colocam a pessoa negra em local de ridículo e negação? ?Mulher branca pra casar, mulata pra fuder, preta pra trabalhar...?, ?nega do cabelo duro...?, ?neguinha safada...?, ?nega do suvaco fedorento...?, ?nega metida e abusada...?, ?não é que eu sou racista, mas negra é mesmo feia, é meu gosto?, entre outras atrocidades encaradas como ?tranquilas? expressões de opinião individual. Linguagem criadora e criatura de uma pulsão intolerante de violência e morte.
O racismo só se manifesta diretamente? Não e não! Agressões físicas e verbais diretas manifestam racismo sim, mas não só elas. Falta de representação é racismo violento! Desamor e desafeto também! Negação da história de um povo também é! Olhares, emanações, expressões, diversas formas de tratamento podem ser racismo que, se somado ao longo da vida, mata trajetórias e gera incríveis feridas em toda uma população, tolhe seu caminho. Todo um leque de ação no mundo vê e trata @ sujeit@ negr@ como alvo de violações, ainda que de forma supostamente velada e inconsciente.
Voltando ao papo dos romances, é comum ouvirmos pelas ruas mulheres negras dizendo: ?Faço tudo pela pessoa que amo, mas ela nunca assume um relacionamento comigo?; ?Comigo só querem sexo?; ?Me disseram que sou maravilhosa em tudo, que torcem pra eu ser feliz, mas que é melhor não se envolver...?, ?Na hora da paquera já chegam junto sem o menor cuidado, como se eu estivesse à disposição?; entre outras pérolas, isso quando há histórias pra narrar, pois é muito comum não haverem interações por sermos ignoradas. Sem contar as famílias nas quais, se alguém que as integra se relaciona com pessoas negras, geralmente ess@ alguém é desaprovad@ e a parceira é agredida por todo lado, inclusive pel@ parceir@ que geralmente não segura à barra e não vence seu próprio racismo arraigado. A possibilidade de filh@s negr@s é execrada, somos negadas em carne e alma.
Não é à toa que muitas mulheres negras envelhecem e morrem como vítimas de violência doméstica, chefas solitárias de lares inteiros, mães solteiras. Ainda sendo abordadas como mucamas que eram estupradas pelo senhor de escrav@s, amas de leite e babás dos filhos de mães brancas, corpos para turismo e exportação genocida, mulheres que se doaram muito e depois permanecem solitárias, zeladoras da casa e de todo capricho imposto pelo poder pigmentocrático.
Se a pessoa negra ocupa o lugar do que é feio, perigoso, impuro, incapaz, animalizado, do que deve só servir, como poderia essa pessoa ser desejada/vista como possível companheira, esposa, alguém que merece carinho, alguém para dar continuidade aos laços parentais e às tradições da família? Os gostos e intenções brotam da mente, mente bastante fruto da história e da cultura; nada é tão por acaso. Coloquemos todos os nossos gostos e desejos sob análise e vejamos o que os direciona.
Não adianta pessoas não negras dizerem que quem mais se discrimina é @ própri@ negr@, isso é querer tirar o corpo fora. Francamente, não é ato de heroísmo manter intacta a auto-estima quando o mundo só oferece desrespeito? Bem sabemos que não somos tratadas como delicadas ou frágeis, sabemos também que não queremos ser isso ou aquilo. Exigimos é sermos olhadas como seres integrais que podem ser da forma que quiserem ser. Mulheres de todas as cores não são simples objetos do desejo alheio!
Um dia ouvi uma história sobre a filha de uma amiga: ?Mãe, gosto de um menino na escola, mas ele não me quer porque diz que sou uma preta feia...?. A menina achava que o problema era ela, sofria com esse peso; afinal ninguém agüenta carregar um erro histórico como se fosse algo só seu. (Daí a importância da coletivização! Da troca com quem vive a mesma coisa!). Então, a mãe belamente respondeu: ?Filha, problema dele que é limitado, que só vê um tipo de beleza, azar dele que não tem olhos pra ver as várias belezas no mundo?. Linda resposta afirmativa! Será que o problema é só nosso, ou é, sobretudo, de uma sociedade limitada em seus arranjos e formas de percepção?
Mulheres negras em idade avançada costumam já ter uma história de poucos resultados na vida afetivo-sexual. Mulheres negras jovens não foram ou são as noras ideais do passado ou as minas descoladas do presente, peso de lugares e não lugares, poucos espaços de livre-expressão. Contudo, estamos sempre na glória de nossas reinvenções na maneira de existir apesar, a levar, transitando margens e cantando estradas. Sejamos nosso centro!
Há quem tenha a coragem de dizer que um artigo como esse é vitimização, o que nos soaria como insensibilidade em não encarar a força dos fatos. A intenção é que nós negras nos leiamos aqui como legítimas figuras de resistência que, como a terra, fazemos brotar flores do lodo. Como a terra, continuamos ocupando posições fundamentais na reprodução física, econômica e cultural de uma sociedade que nos rejeita. Ainda assim, sempre é tempo de exigir o que de nosso é o bem e o direito; mudar nosso foco, gritar por órgãos que possam captar o profundo de nosso toque, cheiro, gosto, visão, sons. E que possam nos oferecer tudo isso também. Há que se expandir a percepção. Há que se sentir novas linguagens ou esse mundo não será possível para nós. Ainda assim escolho primeiro festejar, ?Vem celebrar comigo, que todo dia alguma coisa tentou me matar, e fracassou...?. Somos sobreviventes, somos vivas viventes!
A mulher negra brasileira
Ser mulher e ser negra no Brasil significa está inserida num ciclo de marginalização e discriminação social. Isso é resultado de todo um contexto histórico, que precisa ser analisado na busca de soluções para antigos estigmas e dogmas.
A abolição da escravatura sem planejamento e a sociedade de base patriarcal e machista, resulta na situação atual, em que as mulheres afro-descendentes são alvo de duplo preconceito, o
racial e o de gênero.
Ascender socialmente é algo muito difícil para a mulher negra, são muitos obstáculos a serem superados. O período escravocrata deixou como herança o pensamento popular, em que, elas só servem para trabalhar como domésticas ou exibindo seus corpos.
As que se destacam, tiveram que provar mais vezes do que as mulheres brancas a sua competência, por isso, é que é possível afirmar que a questão de gênero é um complicador, mas se esta for somada a questão de raça, o resultado é maior exclusão e dificuldades.
Analisando dados de pesquisas realizadas pelo DIEESE e outros órgãos, é possível verificar que o preconceito resulta em salários mais baixos para os negros em relação aos brancos, incluindo o item gênero, inferi-se que o homem negro ocupa um patamar abaixo do da mulher branca quanto ao rendimento salarial. Mas as mulheres negras se encontram ainda mais abaixo na pirâmide ocupacional.
No que diz respeito a escolaridade, pesquisa realizada em 2006, revela que entre as mulheres negras com 15 anos ou mais, a taxa de analfabetismo é duas vezes maior que entre as brancas, no que tange ao trabalho doméstico infantil, 75% das trabalhadoras são meninas negras.
Devido à extrema pobreza, as meninas ingressam muito cedo no mercado de trabalho, sendo exploradas pela sociedade, que sabendo da sua condição financeira, oprime e humilha. Como é possível verificar, para as mulheres afro-descentes o mercado reserva as posições menos qualificadas, os piores salários, a informalidade e o desrespeito.
Apesar dos avanços alcançados pelas mulheres no mercado de trabalho, ocupando posições importantes a nível profissional, este avanço é muito reduzido quando se observa o universo negro. Há poucas mulheres negras trabalhando como executivas, médicas, enfermeiras, juízas, dentre outras profissões de destaque; o que se verifica ainda é a grande maioria realizando trabalhos domésticos e recebendo baixos salários.
Mesmo as que possuem diploma universitário, sofrem as discriminações do mercado. Muitas não conseguem exercer a profissão que se dedicaram na universidade e sem opção continuam exercendo as mesmas profissões de outrora.
Quando o item analisado é a saúde, verifica-se a continuidade da desigualdade. O percentual de mulheres negras que não possuem acesso ao exame ginecológico é 10% superior ao número de mulheres brancas; pesquisa de 2004 revela que 44,5% das mulheres negras não tiveram acesso o exame clínico de mamas, contra 27% das mulheres brancas; entre 2000 e 2004, a infecção por HIV/AIDS subiu de 36% para 42,4% entre as mulheres negras, enquanto na população feminina branca, a incidência de casos diminuiu, no mesmo período.
Vale salientar, ainda, que as mulheres negras possuem menor acesso a anestesia durante o parto e a esterilização cirúrgica; apresentam menor expectativa de vida se comparada as mulheres brancas; e, 58% dos óbitos de jovens negras por causas externas referem-se a assassinatos.
Além da violação ao direito a um trabalho digno, a ascensão social, a educação e saúde, as mulheres negras são as mais vulneráveis quando o assunto é violência, isso porque, desde a época da escravidão a mulher negra é vista como objeto sexual, povoando as fantasias dos homens.
A mulher negra então é aquela que não possui vida psicológica, afetiva e intelectual. Enquanto a mulher branca era ”guardada e vigiada”, a mulher negra era submetida ao abuso sexual, ao estupro e a humilhações. No período escravocrata estuprar uma negra não era crime, e sim um sinal de virilidade do homem branco.
A mulher negra, por diversas vezes têm se mostrado a mantenedora da família, não só no contexto atual, em que sozinha criam e educam seus filhos, como também no passado. Isso por que, após a abolição e a imigração européia, não havia mercado de trabalho para o homem negro, coube a mulher negra o sustento da família, trabalhando nas casas dos ex-senhores ou vendendo quitutes.
Além de criarem seus filhos, abriram casas de candomblé, criaram seus filhos-de-santo e mantiveram vivos os laços comunitários originários da África. As fundações das casas de Axé foram imprescindíveis para a preservação da cosmovisão africana, da identidade e da cultura negra, da religiosidade que perpassa por todas as esferas da vida do povo africano. Foram estas casas que preservaram a tradição do culto aos orixás, bacuros, inquices e voduns, e as línguas africanas.
Enquanto na visão do colonizador a mulher possuía uma posição inferior, na cosmovisão africana as mulheres tinham e têm lugar de destaque, nas religiões de matriz
africana elas são guardiãs dos segredos, zeladoras do povo de santo, e um dos atores responsáveis pela perpetuação da cultura e da reconstrução da identidade negra no país.
Uma questão importantíssima a ser analisada com relação ao vagaroso progresso da efetivação dos direitos das mulheres negras, é quanto a representatividade política destas. Não há um contingente significativo de mulheres negras no parlamento, isso resulta muitas vezes na falta de criação e concretização políticas públicas voltadas para esta parcela da população.
As políticas implantadas são em sua maioria de cunho genérico, e num universo de desigualdades social, racial e de gênero é necessário a realização de políticas públicas específicas para as mulheres negras, posto que, são as mais vulneráveis em casos de ocorrência de violação de direitos humanos.
A mulher negra precisa ser valorizada não só pelos deliciosos quitutes, pelo seu molejo contagiante, pelo corpo sensual, mas principalmente pelas suas qualidades como ser humano, pelos seus dotes intelectuais. O mundo tem mostrado que é tempo de mudança, os Estados Unidos da América elegeu um presidente negro, os avanços raciais estão ocorrendo.
A melhoria da posição social do negro e especificamente da mulher negra é resultado de um esforço gigantesco. Homens e mulheres afro-descendentes têm lutado para levar dignidade ao povo negro, resgatar a sua identidade e auxiliar na busca da ascensão social.
O movimento negro brasileiro, algumas autoridades engajadas e outras pressionadas pela sociedade têm lutado para que o negro tenha o lugar que sempre mereceu, que o negro seja tratado com dignidade. Nesta luta surgiram os movimentos feministas, na busca pela implementação de leis que garantam os direitos básicos das mulheres negras.
É preciso lembrar que algumas contra toda adversidade conseguiram chegar a universidade, alcançaram um lugar de destaque na sociedade, mas as barreiras continuam. Não é possível haver satisfação enquanto outras continuam nos guetos passando fome, sofrendo as humilhações desta sociedade desigual e opressora.
O povo negro brasileiro está se organizando, as mulheres negras precisam “tomar” o poder, comandar seu destino, lutar, se organizar, transformar. Há de chegar o dia, em que vê uma negra recebendo diploma na área de medicina, advocacia,
odontologia, não causará mais espanto, porque teremos alcançado a tão almejada igualdade.
As mulheres negras, necessitam reencontrar a sua identidade, valorizar sua história e suas raízes, se assumir enquanto afro-descendentes e agentes ativos desse processo de democratização racial.
Por Walkyria Chagas da Silva Santos
Pós-graduanda em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia -UFBA
E-mail: kyriachagas@yahoo.com.br
PARA SABER MAIS:
SILVA, Maria Nilza da. A mulher negra. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/022/22csilva.htm.
PRAXEDES, Rosângela Rosa. Mulheres negras: reflexões sobre identidade e resistência. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/026/26rpraxedes.htm.
A mulher negra e pobre no Brasil. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/a-mulher-negra-e-pobre-no-brasil.
http://www.dieese.org.br/esp/estpesq14112005_mulhernegra.pdf
http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/estado/2007/05/10/ult4530u46.jhtm
www.casadeculturadamulhernegra.org.br
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, 2008
Mészáros: a emancipação feminina e as lutas de classes
Demétrio CherobiniSó quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão.
Rita Lee e Zélia Duncan
Com a proximidade do Dia Internacional da Mulher ganha força a exigência de se refletir acerca de um tema que interessa a todos nós da classe trabalhadora: através de que parâmetros se pode orientar uma luta coerente e radical pela realização de uma comunidade humana na qual estejam definitivamente abolidas as práticas sociais - que de múltiplas maneiras se expressam - de subordinação hierárquica e discriminatória das mulheres em relação aos homens? Em outras palavras: que tipo de igualdade se deve buscar? A condição para a resolução dessas questões é a máxima clareza possível a respeito do conjunto de relações que organizam o sociometabolismo humano no contexto onde atualmente se dão as batalhas pela emancipação feminina.
É necessário, então, que nos perguntemos: o que é que define, em todos os períodos de sua supremacia histórica, o ser da relação-capital? Em Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, o filósofo húngaro István Mészáros apresenta-nos uma resposta clara, sintética e precisa:
"As características essenciais que definem todas as possíveis formas do sistema do capital são: a mais elevada extração praticável do trabalho excedente por um poder de controle separado, em um processo de trabalho conduzido com base na subordinação estrutural hierárquica do trabalho aos imperativos materiais da produção orientada para a acumulação - 'valor sustentando-se a si mesmo' (Marx) – e para a contínua reprodução ampliada da riqueza acumulada. As formas particulares de personificação do capital podem variar consideravelmente, contanto que as formas assumidas se moldem às exigências que emanam das características definidoras essenciais do sistema." (2002, 781)
Eis aí, portanto, a essência da estrutura de relacionamento social hoje hegemônica sobre a superfície do globo e que nos domina a todos: uma forma fetichista e hierárquica de controle sobre a atividade produtiva humana, que se estabelece a fim de lhe extrair, num movimento sempre acumulativo e expansivo, a maior quantidade possível de trabalho excedente.[1] Paradoxalmente, tal sistema é o fruto da própria ação coletiva dos seres humanos, que, em certa época histórica, se autonomizou, voltou-se contra eles e passou a subjugá-los, compondo uma realidade profundamente antagônica na qual a criatura é a senhora dos seus criadores. Por tais razões, Marx definiu o capital como sendo a contradição em processo.
Mészáros se esforça, em seu magistral estudo, em desvelar o modo como esse sistema se organizou a partir de uma articulação dinâmica entre suas inúmeras partes constituintes – o capital é, no dizer do filósofo, um sistema de mediações -, cada uma delas inerentemente contraditória, que vai desde a família nuclear, os meios alienados de produção e o dinheiro, passando pelos objetivos fetichistas de produção e o trabalho "estruturalmente separado da possibilidade de controle", até as várias formas de Estado do capital e o "incontrolável mercado mundial", em cuja estrutura os participantes da atual ordem sociometabólica devem se integrar e se adaptar.[2]
O capital, diz o filósofo húngaro, não inventou todas as mediações materiais contraditórias que lhe conformam o ser. Algumas delas existem há milênios, como, por exemplo, a divisão hierárquico-estrutural do trabalho, que antecede historicamente em muito as formas embrionárias do capital. Entretanto, no momento em que este sistema se tornou hegemônico sobre a atividade produtiva humana, assimilou tal divisão, que veio a se constituir mesmo em um dos seus componentes fundamentais.
Nesse processo, esta mediação particular – a divisão hierárquica do trabalho - adquiriu novas determinações e, coadunada com todas as demais mediações do sistema, passou a compor a especificidade do complexo do capital como processo acumulativo e expansivo de exploração de trabalho excedente. "O mesmo acontece, diz Mészáros, com todas as formas de dominação historicamente precedentes: elas se subordinam ou são incorporadas às mediações de segunda ordem específicas do sistema do capital, da família às estruturas de controle do processo de trabalho, e das variadas instituições de troca discriminadora até o quadro político de dominação de tipos muito diferentes de sociedades." (2002, 206-7)
O mesmo acontece, pois, com a subordinação hierárquica e discriminatória das mulheres em relação aos homens. O capital, historicamente, não foi o responsável por produzir esse tipo peculiar de relacionamento contraditório. Contudo, uma vez que o sistema se tornou dominante sobre o metabolismo social humano, passou a englobar tal conflito e a se servir dele para realizar seus propósitos de exploração material. Daí a impossibilidade de, no interior do sistema do capital, as mulheres conseguirem mais do que uma igualdade meramente formal em relação aos homens e de atingirem, enfim, uma emancipação verdadeiramente digna deste nome.
Mészáros afirma que, dentro dos limites da ordem atual, é até possível encontrar algumas "ilhas" de relacionamentos igualitários, verdadeiramente horizontais, entre homens e mulheres, no meio do "oceano" de submissão e discriminação do sistema, mas tais casos não passam aí de eventos isolados. Nas palavras do filósofo:
"Pares isolados podem ser capazes de ordenar (o que certamente fazem) seus relacionamentos pessoais em verdadeira igualdade. Na sociedade contemporânea existem até mesmo enclaves utópicos de grupos de pessoas que interagem comunitariamente e podem se afirmar engajados em relações interpessoais não-hierárquicas humanamente satisfatórias e em formas de criar os filhos muito diferentes da família nuclear e suas fragmentações. Não obstante, nenhum desses dois tipos de relação pessoal pode se tornar historicamente dominante no quadro do controle sociometabólico capitalista. Sob as circunstâncias prevalecentes, o übergreifendes Moment [isto é, o momento predominante – neste contexto, o macrocosmo do capital] determina que os microcosmos da reprodução devem ser capazes de se aglomerar num conjunto abrangente que não pode, de forma alguma, funcionar numa base de verdadeira igualdade. O menor de todos os 'microcosmos' da reprodução deve sempre proporcionar sua participação no exercício global das funções sócio-metabólicas, que não incluem apenas a reprodução biológica da espécie e a transmissão ordenada da propriedade de uma geração à outra. Nesse aspecto, não é menos importante seu papel essencial na reprodução do sistema de valores da ordem estabelecida da reprodução social, totalmente oposto – como não poderia deixar de ser – ao princípio da verdadeira igualdade." (ibid., 269-70)
Ou seja, os "microcosmos da reprodução" - isto é, as famílias nucleares – estabelecem uma relação dialética com o "macrocosmo" do capital. Mas, em virtude desta instância ser o "momento predominante" da relação, as transformações históricas que porventura ocorram na estrutura das famílias devem se ajustar aos parâmetros mais amplos do complexo social do qual fazem parte - justamente, o sistema hierárquico de exploração de trabalho excedente. Ainda que essa determinação não seja absoluta – o que se comprova pelo fato de haver casos alternativos isolados de real horizontalidade –, o sistema vai sempre forçar suas microestruturas a reproduzir, a partir do seu interior, o sistema de valores necessário para a perpetuação da ordem maior. A subordinação das mulheres, portanto, apesar de não ter sido criada pelo capital, é reforçada por ele diuturnamente com o auxílio dos "microcosmos" que o sistema exige para prolongar no tempo e no espaço a sua vigência.
Mészáros explica que o capital perpetuou a subordinação das mulheres e se serviu dela historicamente de várias maneiras. Na família, como foi dito, reproduzindo os valores discriminatórios, antagônicos à horizontalidade das relações sociais e necessários para a manutenção da macroestrutura hierárquica de exploração da atividade produtiva. No "mundo do trabalho", por sua vez, atribuindo às mulheres, na mais larga escala, uma remuneração inferior à dos homens. Nesse contexto, diz o filósofo, apesar de se verificar a existência de algumas conquistas históricas – possibilitadas, entre outras coisas, pela expansão do capital em sua fase ascendente –, elas tendem a ser negadas na prática nos momentos em que o sistema porventura enfrentar dificuldades maiores para a realização da acumulação de capital – como na atual época de crise estrutural, por exemplo.
Mészáros assinala ainda que nem no campo da política a igualdade, a participação eqüitativa das mulheres em comparação com os homens, se materializou de forma efetiva. Isso se deve precipuamente ao fato de que, no sistema do capital, o Estado não tem, entre suas atribuições, a tarefa de promover a igualdade real entre os participantes de tal ordem sociometabólica. Por ser uma mediação constituinte indispensável da base material do referido complexo – fato que implica em férreas determinações -, sua função principal acaba sendo a de viabilizar – ora por meios diretos, ora por meios indiretos - a reprodução dessa mesma estrutura de controle hierárquica e discriminatória da qual ele é um dos elementos essenciais. O capital, diz o filósofo húngaro, nos momentos favoráveis para sua expansão, é até capaz de acolher, através do Estado, algumas das demandas sociais particulares de cada conjuntura histórica, desde que estas não modifiquem a estrutura mais íntima do "macrocosmo" do capital – ele não pode, portanto, proporcionar nada mais do que igualdade formal entre as pessoas.[3]
Ora, uma vez que as diversas contradições no plano do relacionamento social humano, criadas historicamente, se integram e se articulam organicamente dentro do grande sistema contraditório de produção e reprodução do capital, o objeto a ser negado – as "cadeias radicais" -, para todos aqueles que aí se encontram nas mais variadas posições de subordinação estrutural hierárquica, torna-se rigorosamente o mesmo: o próprio macro-sistema de exploração de trabalho excedente, com todas as suas correspondentes micro-estruturas de reprodução de valores e práticas sociais discriminatórias. Em outras palavras: além das demandas particulares inerentes à posição de cada grupo, há também uma contradição fundamental, que a todos afeta, e que deve, por isso, se converter em foco canalizador de suas plurais energias combativas.
Concomitantemente, a nova realidade a ser afirmada torna-se um objetivo comum para as múltiplas forças emancipadoras em questão: a realização de uma comunidade humana na qual estejam definitivamente superados os modos de relacionamento social organizados a partir de antagonismos estruturais hierárquicos e discriminatórios - ou seja, a configuração da sociedade dos produtores associados de forma livre, autônoma, cooperativa, sustentável, horizontal e consciente.
Aqui, no entanto, é cabível a seguinte pergunta: diante das tantas derrotas históricas dos movimentos que visavam à superação da ordem do capital, o que nos leva a pensar que a sua derrocada seja possível em nossos dias? Responde Mészáros: justamente, a nova época de crise estrutural do sistema do capital, na qual nos situamos, onde esta macro-estrutura se desenvolveu a tal ponto que acabou por produzir contradições potencialmente explosivas, para si e para todos os que se encontram no seu interior, e que comprometem por isso a sua viabilidade como controladora do sociometabolismo humano.
O filósofo explica que, durante a sua fase histórica de ascendência, o capital usou as mediações contraditórias como "motor" do seu processo de acumulação e expansão continuada. Com o término de tal fase de ascendência, contudo, alguns desses antagonismos começaram a se manifestar como poderosos entraves para o desenvolvimento do complexo global como um todo. Exatamente neste momento – em torno do fim da década de 1960 -, teve início a chamada crise estrutural do sistema do capital, uma situação em que a única maneira encontrada pela ordem vigente para lidar com as suas contradições mais problemáticas – os seus "limites absolutos" - foi fomentar uma forma de produção que tem na destrutividade (produção destrutiva) a sua dinâmica propulsora.
A produção destrutiva do capital se expressa de múltiplas formas: na precarização do trabalho, na degradação ambiental, na obsolescência planejada, no "complexo militar-industrial" - setor fundamental da economia mundial atual, onde as mercadorias (artefatos bélicos, etc.) se destroem imediatamente no ato mesmo do seu consumo -, entre outras. É esta condição, na qual o capital, para sanar algumas das suas contradições, começa a fazer uso de remédios amargos até para si mesmo – e é isto o que configura, segundo Mészáros, uma era de transição -, que abre, justamente, a possibilidade objetiva para a sua transcendência positiva.[4]
O capital pode, portanto, ser vencido. Para tanto, precisa ser energicamente negado em conjunto, em todos os âmbitos onde faz prevalecer o seu domínio, por todos os grupos sociais que, no interior desse complexo, se encontram numa posição de antagonismo estrutural em relação às personificações do capital. Mas não somente a negação é essencial para uma práxis revolucionária radical e conseqüente. Também a afirmação, nesse processo, adquire profunda importância. É aqui que ganha destaque a proposta mészáriana da igualdade substantiva para a superação da ordem social que, em nossos dias, se sustenta sobre uma miríade de estruturas hierárquicas e discriminatórias.
A igualdade substantiva, assinala o filósofo húngaro, é diferente da igualdade formal assegurada pelo capital. Também não equivale ao "nivelamento por baixo", que muitos acusam o socialismo de querer preconizar. Ela deve ser definida qualitativamente, e não de forma meramente quantitativa. Para melhor explicitar os fundamentos de sua tese, Mészáros recorre a Marx e a algumas das influências políticas do célebre pensador alemão, especialmente François Babeuf e Felippe Buanorroti.
Lemos, então, em O poder da ideologia, que
"A igualdade deve ser medida pala capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas [grifo nosso]. Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores." (BABEUF, apud Mészáros, 2004b, 42)
Tais são os princípios – endossados, segundo Mészáros, por Marx - que definem a igualdade substantiva e que precisam ser afirmados contra a forma de sociabilidade estabelecida atualmente pelo capital. É este, pois, o tipo de igualdade que necessitamos buscar. Não a mera equivalência de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade avaliada pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais. É nisto que se deve basear o projeto alternativo socialista para, na luta de classes, superar o modo de controle sociometabólico do capital e instaurar uma nova maneira, qualitativamente diferente, de intercâmbio e de relação entre os homens e as mulheres e entre a humanidade e a natureza.[5] Leiamos, mais uma vez, o que afirma o filósofo húngaro nesse sentido:
"A natureza da nova forma [isto é, da comunidade humana emancipada] pode ser resumida, citando as palavras de Marx, como um sistema baseado em 'um plano geral de indivíduos livremente combinados'. Isso quer dizer, em termos mais simples, a substituição das cadeias de trabalho impostas pelo capital pelos elos cooperativos dos indivíduos e os vários grupos a que eles pertencem. Por meio dessa mudança qualitativa, eles terão condições de estabelecer uma forma superior e potencialmente muito mais produtiva de coordenação geral do que a que é viável com base no controle externo autoritário da mão-de-obra no sistema de trabalhos forçados do capital." (ibid., 43-4)
Somente o controle social instituído e realizado dessa maneira pode garantir a sustentabilidade das relações metabólicas estabelecidas entre homens, mulheres e a natureza. A sustentabilidade é entendida por Mészáros, nesse contexto, justamente, como o "controle consciente do processo de reprodução sociometabólica pelos produtores livremente associados." (ibid., 44) Ficam definidos, desse modo, os princípios orientadores da práxis capaz de proporcionar tanto a emancipação dos proletários,[6] quanto a emancipação das mulheres – estas lutas, em verdade, não podem mais ser vistas como isoladas uma da outra.
Para fazermos uso novamente das palavras do filósofo húngaro:
"sem mudanças fundamentais no modo de reprodução social, não se poderão dar sequer os primeiros passos em direção à verdadeira emancipação das mulheres, muito além da retórica da ideologia dominante e de gestos de legislação que permanecem sem a sustentação de processos e remédios materiais adequados. Sem o estabelecimento e a consolidação de um modo de reprodução sociometabólica baseado na verdadeira igualdade, até os esforços legais mais sinceros voltados para a 'emancipação das mulheres' ficam desprovidos das mais elementares garantias materiais; portanto, na melhor das hipóteses, não passam de simples declaração de fé. Jamais se enfatizará o bastante que somente uma forma comunitária de produção e troca social pode arrancar as mulheres de sua posição subordinada e proporcionar a base material da verdadeira igualdade." (2002, 303)
Fica descartada, assim, a retórica mistificadora própria à ideologia dos defensores da ordem estabelecida, que defende que a mera "igualdade de oportunidades" dá conta de suprir as exigências concernentes aos problemas da emancipação humana.
O poeta brasileiro Ferreira Gullar, nos tempos em que ainda usava da pena como arma crítica em favor dos oprimidos do mundo, escreveu, sobre os povos da América Latina, algumas de suas palavras mais lúcidas: "Somos todos irmãos/ Não porque dividamos/ O mesmo teto e a mesma mesa:/ Divisamos a mesma espada/ Sobre nossa cabeça." Sutilmente transformado, este poema nos serve para expressarmos sinteticamente o anseio inerente ao presente artigo. E, nesse sentido, se levarmos em conta o fato de que a mesma espada não está assentada apenas sobre a cabeça dos latino-americanos e sim sobre todos aqueles que, pelos mais distantes rincões do planeta, se encontram enredados nas múltiplas estruturas hierárquicas que realizam os imperativos do sistema do capital, teremos uma boa imagem do tamanho do nosso fardo e também da magnitude do nosso desafio.
Se se aperceberem disto, os proletários e feministas conseqüentes de nossa época histórica poderão bem andar de mãos dadas em suas lutas políticas daqui por diante.
Notas:
[1] Com base numa leitura particular dos escritos de Marx e sob a influência dos economistas marxistas norte-americanos Paul Baran e Paul Sweezy – mas com algumas sutis modificações -, Mészáros irá estabelecer a exploração de trabalho excedente – e não meramente a da mais-valia – como elemento definidor do ser do capital. Para maiores esclarecimentos a esse respeito, ver, além do já referido Para além do capital, Baran (1984) e Baran e Sweezy (1966).
[2] Estas são as assim chamadas mediações de segunda ordem do sistema do capital. São, enquanto criações históricas, qualitativamente diferentes das mediações de primeira ordem da atividade produtiva. Tanto em Para além do capital quanto em Estrutura social e formas de consciência (2009), Mészáros apresenta-nos uma lista detalhada dos componentes de ambos os conjuntos.
[3] Por esses mesmos motivos, esclarece Mészáros, nem nos países pós-capitalistas do século XX se logrou superar a verticalidade das relações entre homens e mulheres. A citação da escritora feminista norte-americana Margaret Randall, que a seguir transcrevemos, é bastante ilustrativa de sua concepção a respeito do tema: "Na verdade, nem as sociedades capitalistas que tão falsamente prometem a igualdade nem as sociedades socialistas que prometeram a igualdade e até mais, adotaram a bandeira do feminismo. Sabemos como o capitalismo coopta qualquer conceito libertador, transformando-o em slogan utilizado para nos vender o que não carecemos, onde as ilusões de liberdade substituem a liberdade. Agora me pergunto se a incapacidade do socialismo de abrir espaço para a agenda feminista – para realmente adotar esta agenda à medida que emerge naturalmente em cada história e cada cultura – seria uma das razões pelas quais o socialismo não poderia sobreviver como sistema" (RANDALL, apud Mészáros, ibid., 290). Nesse contexto, deve ser dito também que, para o filósofo húngaro, o fato de as garantias dadas pelo Estado não serem suficientes para assegurar a verdadeira emancipação, não significa que as lutas no interior dessa instância específica não sejam importantes. Elas o são, sim, e devem ser realizadas enérgica e criticamente. O fundamental, contudo, é que esses combates estejam articulados com a formação das mediações extraparlamentares capazes de se assenhorear do controle sobre o metabolismo social humano de maneira consciente e sustentável. É isto que, justamente, configura a proposta da ofensiva socialista estabelecida por István Mészáros ao longo de sua fecunda teorização política. Infelizmente, em virtude das limitações deste texto, não há espaço para uma maior explanação acerca de tais temas. Para maiores informações sobre as complexas formulações do filósofo húngaro a respeito da relação entre o capital e o Estado, da função e da vigência continuada desse sistema nas sociedades do chamado "socialismo realmente existente" (com destaque para as explicações sobre as diferenças entre a extração econômica e a extração política do trabalho excedente) e da impossibilidade de se realizar a emancipação das mulheres no interior desse complexo sociometabólico, remetemos os leitores interessados especialmente aos capítulos 2, 5, 17, 18 e 22 de Para além do capital. De nossa parte, recentemente procuramos dar uma singela contribuição para o entendimento da concepção de Estado em Mészáros através de um breve artigo (2011), que listamos nas referências.
[4] É necessário explicar, nesse contexto, que, de acordo com a teoria de Mészáros, o próprio antagonismo existente na relação entre homens e mulheres configura hoje um dos limites absolutos do capital – os outros três são a contradição entre o capital transnacional e os Estados nacionais, a "eliminação das condições de reprodução sociometabólica", isto é, a contradição entre a necessidade de expansão infinita do capital e a finitude dos recursos naturais e humanos disponíveis, e o desemprego crônico. Os limites absolutos - que ao serem ativados dão início à crise estrutural do capital – são aqueles que só podem ser eliminados pela transformação estrutural do próprio complexo em que se inserem, com a sua conseqüente substituição por outro modo de organização social qualitativamente diferente e viável. São distintos, portanto, dos limites relativos do sistema, isto é, as contradições com as quais se pode lidar dentro da ordem mesma, sem que seja preciso alterar substancialmente seus fundamentos. Aqui, um ponto importante deve ser frisado: a ativação dos limites absolutos do capital e a conseqüente crise estrutural que daí emerge não significam que o sistema esteja em vias de se acabar ou que vá implodir por conta própria. O sistema do capital, nesta conjuntura, continua vivo, mas vivo como um câncer – daí o termo crescimento canceroso utilizado por Mészáros (2004) -, configurando, portanto, uma dinâmica altamente destrutiva e agressiva. É isto que funda, justamente, a atualidade histórica da ofensiva socialista de que fala o filósofo húngaro. Nesse contexto, vale a pena mencionar ainda, a respeito da crise estrutural do capital, que Mészáros tece interessantes considerações sobre as manifestações dessa situação em termos de teoria do valor (e também do antivalor). É impossível, contudo, dentro dos limites deste artigo, aprofundarmo-nos sobre tais questões. Para maiores informações, remetemos novamente os interessados à leitura de Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, especialmente os capítulos 5 e 16. Para uma boa visão das implicações políticas das constatações do filósofo húngaro, é útil ler também Mészáros (2010). Em uma recente pesquisa teórica (2010), realizada junto à Universidade Federal de Santa Catarina, desenvolvemos uma análise detida sobre todos esses temas.
[5] A igualdade substantiva é, enquanto um dos princípios orientadores da estratégia revolucionária socialista, o primum inter pares em relação aos demais - isto é, o "primeiro entre iguais", conforme Mészáros (2008). Em seu magnífico ensaio Socialismo no século XXI - que está contido no livro O desafio e o fardo do tempo histórico (cit.) -, o filósofo húngaro articula, arquimedianamente, tal princípio com outros sete, a saber: o imperativo de se trazer à luz uma ordem alternativa historicamente sustentável, a fim de se superar o enorme desperdício de recursos naturais e humanos levados a cabo pela lógica capitalista do lucro; a promoção da real participação dos "produtores associados", por meio da transferência progressiva a estes do poder de decisão sobre a atividade produtiva; o planejamento, que deve fazer vir à tona um modo de organização social que não agrida as condições materiais de existência e que torne possível a reprodução do gênero humano sobre o planeta numa perspectiva de longo prazo; o crescimento qualitativo em utilização dos produtos do trabalho, para que se possa combater a destrutividade que satisfaz as demandas do capital auto-expansivo; a complementaridade entre os âmbitos nacional e internacional nas lutas pela emancipação humana; a unificação das esferas da reprodução material e da política, que foram separadas pelo capital durante seu movimento histórico auto-constitutivo; e, finalmente, a educação, realizada em meios formais e não formais, como alavanca para se produzir o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas necessários para a realização da nova forma histórica, uma educação que se converta, em última instância, em auto-educação permanente para uma sociedade que supere definitivamente as determinações fetichistas do sistema produtor de mercadorias.
[6] Damos, aqui, ao conceito de proletários, o significado preciso que Mészáros atribui a ele. Partindo da compreensão de que o sistema do capital é uma estrutura de controle hierarquicamente estabelecida sobre o metabolismo social, o filósofo húngaro estabelece que proletário não é somente o empregado da fábrica, mas todo aquele sujeito - empregado ou não, na fábrica ou fora dela - alijado do controle consciente dos processos sociometabólicos da humanidade. Nas palavras do autor de O desafio e o fardo do tempo histórico: "As classes operárias industriais constituem-se, em sua totalidade, de trabalhadores manuais, desde a mineração até os diversos ramos da produção industrial. Restringir o agente social da mudança aos trabalhadores manuais não é obviamente a posição do próprio Marx. Ele estava muito longe de pensar que o conceito de 'trabalhador manual' proporcionaria uma estrutura adequada de explicação sobre aquilo que uma mudança social radical demanda. Devemos recordar que ele está falando de como, pela polarização da sociedade, um número cada vez maior de pessoas é proletarizado. Assim, é o processo de proletarização – inseparável do desdobramento global do capital – que define e em última instância estabelece o problema. Ou seja, a questão é como a maioria esmagadora de indivíduos cai em uma condição na qual perde todas as possibilidades de controle sobre a sua vida e, nesse sentido, torna-se proletarizada [grifo nosso]." (2007, 70)
Referências:
BARAN, Paul. A economia política do desenvolvimento (Coleção Os economistas). São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BARAN, Paul e SWEEZY, Paul. Capitalismo monopolista. Ensaio sobre a ordem econômica e social americana. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966.
CHEROBINI, Demetrio. Educação e política no pensamento de István Mészáros: estudo introdutório. Florianópolis, SC: 2010. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.
CHEROBINI, Demetrio. O mito do Estado como "indutor do desenvolvimento", 2011. Disponível em
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. A globalização capitalista é nefasta. (Entrevista a Brasil de Fato), 2004. Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=3314
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004b.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Princípios orientadores da estratégia socialista. in Margem Esquerda – ensaios marxistas nº 11. São Paulo, Boitempo, 2008, p. 57-69.
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.
MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista. São Paulo: Boitempo, 2010.
Somos mulheres e não mercadoria!!
Desde a década de 1970 o movimento feminista levanta a bandeira do "nosso corpo nos pertence". Ela expressa o questionamento das mulheres em relação à sexualidade, à imposição de padrões e em relação à reprodução. Ela representa a autonomia das mulheres sobre seus corpos e suas vidas. E o que temos visto nos últimos anos é que este debate esta cada vez mais atual. No último período, em especial, estamos sofrendo uma série de ataques à nossa autonomia. Estamos vendo o Estado, as igrejas e os homens criarem cada vez mais artifícios para nos "prenderem" em padrões que servem ao mercado.
No Brasil, estes ataques estão cada vez mais intensos, e o exemplo mais recente é o da "guerra" que está sendo travada para tentar criminalizar ainda mais as mulheres que recorrem a um aborto. A mídia, todos os setores conservadores da nossa sociedade e, principalmente, as instituições religiosas têm feito uma verdadeira batalha para nos retirar os pequenos avanços obtidos. Essa ofensiva contra a autonomia de nossos corpos ganhou mais um ator, o Projeto de Lei que visa regulamentar a prostituição em nosso país.
Para além do que o projeto compreende, que de central é regulamentar, não só a prática da prostituição, como também o mercado que se esconde atrás dela temos que avaliar o que ele tem gerado. O debate trazido através deste projeto traz a tona as faces mais cruéis do neoliberalismo aliado ao machismo. E até os setores mais "progressistas" de nossa sociedade não compreendem que o capitalismo se apropria do sexo e mercantiliza até mesmo o desejo.
Quando falamos sobre a prostituição, não podemos deixar de avaliar o papel que a globalização e que o mercado cumprem no incentivo a sua prática. Eles representam hoje um fator central para a prostituição e para o tráfico de mulheres, trabalhando no aumento das desigualdades entre homens e mulheres. As indústrias do sexo (algumas multinacionais) geram lucros estrondosos e receitas importantes. São consideradas vitais para a economia de diversos países. Chegam a representar 5% do PIB dos países baixos e em média 8% do conjunto das atividades econômicas dos países asiáticos. Entre os países mais pobres a questão se agrava, pois o FMI e o Banco Mundial estimulam o desenvolvimento do "turismo" e do "lazer" como forma de reembolso da dívida desses países. Dessa forma, a prostituição passa a fazer parte da estratégia de desenvolvimento destes Estados.
Nesse sentido, legalizar a prostituição, na verdade, significa legalizar uma "indústria" que trabalha na expansão do tráfico de mulheres e que se apóia em uma economia subterrânea (bares, hotéis, agências, clubes). Com a prostituição e o tráfico de mulheres, lucram as companhias aéreas, o turismo e até mesmo os governos. Por isso, precisamos ter a compreensão de que a prostituição representa a mercantilização dos seres humanos e o sexo pago faz parte da estrutura que sustenta o capitalismo.
Assistimos hoje o neoliberalismo se apropriar do nosso discurso para impor sua exploração. Em nome da autonomia, do direito de controlar seu próprio corpo, passou-se a defender a legalização da prostituição. Cada vez mais a indústria do sexo é considerada um trabalho legítimo e, com o triunfo dos valores liberais, o sexo pago vem sendo normatizado. A submissão às regras do mercado e às leis contratuais liberais, além do discurso "de uma profissão como outra qualquer", ou "é um simples trabalho" e até mesmo "é uma questão de liberdade" vem sendo utilizadas na sustentação desta política liberal. Como um trabalho que se baseia na violação dos direitos humanos e na opressão das mulheres pode ser considerado legítimo?
Outro argumento comumente utilizado é o de que legalizar a prostituição significa melhorar a vida das mulheres que fazem parte desta rede, oferecendo direitos e garantias que todos os trabalhadores possuem. Em primeiro lugar, a legalização representa um ganho, de verdade, é para o crime organizado, pois o que se normatiza é o mercado, a compra e a venda de mulheres. Mesmo onde a prostituição é legal (Alemanha, Suíça, Grécia, etc.) o papel do crimeorganizado continua sendo fundamental na organização deste mercado e uma minoria das prostitutas se registra para ter acesso aos direitos sociais. A maior parte continua sob a "tutela" dos cafetões. Cada vez que uma menina "escolhe" ser prostituta, como se realmente ela tivesse outra opção, tem atrás de si toda essa rede que engloba cafetões, tráfico, crime organizado e etc. Além disso, pesquisas comprovam que 80% das pessoas prostituídas foram vítimas de algum tipo de violência na juventude, o que contradiz o debate de que seria uma "escolha". A defesa da legalização da prostituição é liberal, pois é baseada na visão onde o individuo escolhe seu caminho e onde as relações humanas estão submetidas ao dinheiro. A prostituição surge do liberalismo e não da liberdade.
Para nós, feministas e socialistas, é inadmissível que as mulheres sejam reduzidas a mercadoria, podendo ser compradas, trocadas, usadas e alugadas. Temos uma visão libertária de sexualidade, que é baseada na igualdade e não na dominação. A relação de poder é constitutiva da nossa organização social e também está presente no sexo. No sexo pago, essa relação se reproduz com o "comprador" tendo total domínio sobre a "mercadoria". Essa "coisificação" e a mercantilização das mulheres têm como função a submissão de um sexo à satisfação dos prazeres sexuais do outro. Por isso, lutamos contra a prostituição. Lutar contra é lutar pela igualdade, que só existirá quando homens não puderem mais vender e nem explorar mulheres.
Amanda Mendonça é ex-diretora de mulheres da UEE/RJ - Militante da Marcha Mundial das Mulheres/R
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