O famigerado funk carioca em livro sem preconceito (...)

NEGRIARA

Entrevista com Silvio Essinger, autor do livro Batidão - Uma História do Funk (editora Record, 2005)
 
Felipe Tadeu - Na orelha do teu livro está escrito "antes de mais nada, um livro para quem não gosta de funk". Apesar da crescente popularização do gênero, o funk carioca ainda é tabu?

Silvio Essinger- Claro, muita gente ainda acha que é música de baixa qualidade, de bandido, música tosca. Apesar de ser uma manifestação cultural legítima, - e é música brasileira -, ainda enfrenta uma série de preconceitos. Ainda mais porque não é música muito veiculada pelas grandes gravadoras, que só chega a ser aceita por elas quando está estourada nacionalmente. Quando um grupo como o Bonde do Tigrão chega à Sony, é só a ponta do iceberg, porque há muito mais gente embaixo.

FT- Como foi que você começou a gostar de funk carioca? Qual foi o primeiro disco do gênero que você comprou e quando isso aconteceu?

SE- O primeiro disco que eu tive não foi comprado, eu ganhei em 1994 quando trabalhava na Tribuna da Imprensa (jornal do Rio de Janeiro). Eu recebi o disco Funk Brasil, do DJ Marlboro, e naquela época eu já tinha uma certa simpatia pelo funk, mas ainda não o levava a sério. Nesse cd tinha uma música muito boa, o Rap do Surfista, do Geração, um grupo que não existe mais e do qual dois integrantes dele viraram PM (guardas da Polícia Militar). Aliás, esse tipo de história é muito comum no funk. Quando um grupo não dá certo, um cara vira crente, o outro PM, ou então é um integrante que entra para o tráfico de drogas. Como o funk não é uma opção profissional muito segura, há sempre histórias tocadas pela tragédia, como foi o caso da dupla Márcio e Goró, que conseguiu até uma certa notoriedade. Quando o negócio deles despencou, o Goró se matou (com um tiro no ouvido, na frente do pai). Mas voltando ao disco do Marlboro, tinha lá uma música do Geração que fazia um paralelo entre o surfista da Zona Sul (parte mais rica da cidade do Rio), que era queimado de praia, com o surfista ferroviário da Zona Norte, que era queimado por causa de um fio de alta tensão (no Rio de Janeiro, muitos jovens das áreas mais pobres costumam praticar o hábito de viajar em cima do teto dos trens elétricos para não pagar passagem e se arriscar numa aventura, numa trágica versão dos chamados esportes radicais). Enquanto o surfista rico come mamão no café da manhã, o outro, quando muito, toma café com pão. A partir dessas comparações, eu fiquei atento naquilo ali. O funk carioca não era aquele macaqueamento do som de Miles Davis como eu imaginava, tinha uma coisa original nele. No ano seguinte, em 95, veio forte o funk Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, que virou uma espécie de hino do Rio de Janeiro. Depois, mais tarde, eu comecei a comprar discos em bancas de jornal, porque você não os encontrava nas lojas normais, só nas bancas, ou no camelódromo (área ocupada por vendedores ambulantes de mercadorias a preços mais acessíveis). Aos poucos eu fui fazendo minha coleçãozinha.

FT- E qual foi o primeiro cd?

SE- Acho que foi um da equipe Furacão 2000, ou da Pipo's, lá por volta de 1997 ou 98. E a primeira vez que fui a um baile funk foi depois de'u ter assinado o contrato para escrever o livro, em 98.

FT- Um dos capítulos mais interessantes do teu livro é o que trata do surgimento do movimento Black Rio na década de 70. Você que cresceu na Zona Norte do Rio, que lembranças guarda desse tempo? Você tinha algum ídolo musical negro, sendo um guri branco de classe média?

SE- Eu não tinha muita percepção dessa época não (Silvio nasceu em 1970). Eu lembro muito das faixas que chamavam para os bailes, aquelas em que vinha escrito "Damas grátis". Mais tarde é que vim conhecer o Gerson King Combo (espécie de James Brown brasileiro). Mas o que ficou mais em mim foi aquela atmosfera dos bailes, apesar de não ter ido a nenhum deles. Eu morava perto do Melo Tênis Clube, na Vila da Penha, onde havia algumas festas, mas a música mesmo não me marcava não. Os nomes é que eram fortes, como Gerson King Combo, a equipe Cashbox. As lembranças mais remotas que eu tenho da música funk é de quando eu já estava na Zona Sul, e assistia na televisão o Som na Caixa, que era o "programa oficial das equipes de som do Rio de Janeiro".

FT- E Tony Tornado, um dos pioneiros da cena black local?

SE- Eu só o conheci quando ele se tornou ator. Eu só soube que ele já tinha sido músico quando li que ele caiu do palco em cima de um espectador, que ficou paraplégico. Bem depois é que descobri que ele era uma força da black music no Brasil. Eu tentei entrevistá-lo para o livro, mas não tive resposta dele.

FT- O disco de Gerson King Combo é realmente muito bom.

SE- É! É black music made in Brazil muito bem feita. Voltando às faixas que chamavam para os bailes, elas ainda são muito eficientes até hoje, porque a divulgação dos bailes funk nunca saem nos jornais. Eu fico sabendo deles quando passo perto da subida do Morro Dona Marta (no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio), ou pela boca da Rocinha (maior favela da América Latina, com cerca de 300 mil habitantes), ou perto da Cidade de Deus (Zona Oeste). Inclusive eu fiz esse circuito do funk todo de ônibus, de carona, ou de van (carros maiores, que transportam passageiros para áreas menos servidas por ônibus). O livro serviu também para que eu conhecesse melhor a cidade do Rio.

FT- O samba e o funk carioca são grande ícones da cultura negra das urbes brasileiras. Você concorda que os apelos do funk junto às novas gerações sejam mais irresistíveis pelo fato dele estar mais associado às inovações tecnológicas?

SE- Sim, e também pelo fato de não ter nenhuma tradição a defender. O funk carioca só tem quinze anos de história, e mesmo que hoje já se fale numa "velha guarda do funk", quem são esses veteranos? São caras que, às vezes, não têm nem 30 anos de idade. Por não ter tradição a defender, isso deixa a música livre, cada um faz o que quer dela. Você tanto pode falar sobre o celular, sobre a marquinha do biquini, sobre a Solange do Big Brother Brasil, dela cantando We Are The World com o inglês todo errado e transformar isso num novo funk. Você pode fazer também um funk sobre as armas, ou um funk gospell. Há todo um campo livre para a inovação.

FT- O que impressiona também no funk é do palco estar aberto para o espectador do baile que queira subir e cantar alguma coisa. Se ele tiver sorte, semanas depois já está sendo cantado por todo mundo.

SE- Na cena musical tradicional não acontece de aparecer tantos artistas e tão rapidamente como no funk. Por exemplo, eu entreguei o livro à editora em outubro do ano passado e, até ele ficar pronto, aconteceu tanta coisa no funk que já dava até apara fazer outro capítulo. Hoje a sensação do momento é um MC (mestre-de-cerimônia) de Madureira chamado Colibri, que é ex-sambista.

FT- A perseguição aos bailes funk são um sinal da intolerância da sociedade brasileira para com esta forma de lazer e manifestação cultural das populações mais pobres. Você sabe de alguém do universo do funk carioca que tenha processado a mídia ou alguém do poder público por discriminação racial?

SE- Não. Embora haja gente como o DJ Marlboro ou o DJ Catra que são de gritar, eu acho que a perseguição não é racial. É contra o pobre em geral, é um problema de classe social, porque no funk tem de tudo. Há uma maioria de negros na cena, mas também muitos brancos, nordestinos. O funk é uma prova de nossa diversidade racial, inclusive ele é o tipo de música que melhor discute identidade sexual. Você vê os homens fazendo suas bravatas machistas, as mulheres respondendo e os gays entrando junto também, com nomes como Lacraia e Garota X. O problema de discriminação contra o funk é porque ele chegou numa época em que os bailes tinham virado campos de guerra, com os chamados "baile de corredor". O governo e a lei agiram de forma a acabar com os campos de batalha e não como discriminação contra ele. Era uma degradação das festas, em que já estava morrendo gente e alguma coisa precisava ser feita. A partir disso, o funk voltou a procurar refúgio nas favelas, que é onde ele voltou a prosperar.

FT- Você passou por alguma situação delicada com alguém do tráfico durante as pesquisas para o livro?

SE- Não. Eu chegava nos morros, via o pessoal armado, os traficantes, mas nada que impedisse o meu trabalho. Eu estava lá para falar de funk e subia com os próprios MC's para entrevistá-los. Era muito óbvio que eu não era morador do morro, sendo que até algumas vezes eu subia com um gringo junto (risos).

FT- Você cita Fernanda Abreu como embaixadora do funk carioca. Ela é realmente considerada "de casa" quando sobe ao palco de um legítimo baile funk nos subúrbios do Rio?

SE- Eu nunca a vi no palco de um baile, mas ela tem muito boas relações com o DJ Marlboro e é uma figura muito popular no Rio de Janeiro todo. Ela não é considerada funkeira, mas é vista como "garota sangue bom". Ela jamais vai tirar uma onda de que é do morro. Ela cantou funks no festival Rock in Rio e no primeiro disco dela, de 1990, Marlboro está lá. Não tem como negar que ela é uma embaixadora do funk carioca. Talvez ela nem se desse bem sobre o palco num baile funk, mas de qualquer forma ela é a garota que leva as coisas para a Zona Sul.

FT- Qual é o melhor letrista do funk carioca?

SE- É o Catra.

FT- E o melhor arranjador e o melhor cantor?

SE- Em noção de arranjos, nós teríamos que ver quem é o melhor programador. Hoje em dia você pode falar de um coletivo do funk. As coisas mais interessantes do funk carioca são feitas hoje coletivamente. Quanto ao melhor cantor, acho que é a Dayse da Injeção. Ela também é nova por sinal e não chegou a entrar no livro, e é um novo talento da Cidade de Deus. Aliás, ela não é tão nova assim porque começou com a Tati Quebra-Barraco, mas só agora que está despontando. Ela canta bem, uma exceção no mundo dos MC's, onde se ganha no grito.

FT- Você vê alguma semelhança entre o funk e a axé music?

SE- Muito do elemento erótico, pornográfico do funk vem da axé music. O funk consegue mimetizar muito os outros estilos, se aproximando muito deles.

FT- Antes de escrever Batidão - Uma História do Funk você tinha publicado um livro sobre punk (Punk - Anarquia Planetária e a Cena Brasileira), da Editora 34. O que o funk e o punk teriam em comum?

SE- A idéia do "faça você mesmo". O momento inicial do punk é "vamos abolir as regras", e o funk carioca também não está nem aí para elas.

FT- E a penetração do funk junto às comunidades do Capão Redondo, em São Paulo, de onde saiu o grupo Racionais, banda que canta textos ultra-pesados sobre a hecatombe social brasileira?


SE- Eu nem sei se o pessoal ouve funk no Capão Redondo, mas os caras dos Racionais ouvem. Tenho um amigo que já viajou no ônibus deles e eles estavam lá, escutando funk carioca. Por mais sisudos que eles sejam, eles têm que ter um momento de descontração na vida deles.

FT- Se formos comparar o chamado "funk consciente" com as letras dos Racionais, o que os funkeiros escrevem parece talquinho Johnson, não acha?

SE- O rap dos Racionais é tipo filme de terror. Os caras parecem que se esforçam para ver quem consegue botar as histórias mais tenebrosas que existem na música. Eles são a fratura social irreparável, estão no meio de uma guerra. Para eles, não vai ter paz nesse mundo e São Paulo jamais vai se reconciliar com a sua periferia. Já o "funk consciente" não, ele traz uma pitada de esperança de que as coisas vão mudar. Os quatrocentos quilômetros entre as duas cidades, Rio e São Paulo, e as singularidades de cada uma delas geraram essas visões distintas.
Felipe Tadeu
Brasilkult@aol.com

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