“Cineastas negras: trajetórias socioespaciais e narrativas cinematográficas” - Pautas silenciadas e diálogos ausentes: uma análise fílmica de O Dia de Jerusa


NEGRIARA

O dia de Jerusa é um curta metragem que apresenta a solidão da mulher negra com uma sensibilidade cotidiana que mora nos detalhes de sua narrativa. Pretendemos trazer para esta comunicação alguns autores que, em certa medida, contribuirão para as reflexões sobre memória, história, lugar de fala, pertencimento, poder, bem como, ampliar as discussões acerca dos sujeitos e seus corpos negros que (re) produzem as cenas atravessadas interseccionalmente por uma memória coletiva, pautada na leitura do outro. Indagaremos o quanto há de Bertold Brecht no filme, na tentativa de trazer algumas epistemes subalternas buscando analisar o caráter encenado à mise en scène dos sujeitos. 

Elipse

Quando assistimos a um filme, além de vivenciarmos o lazer, nós podemos estabelecer contato audiovisual e vínculo emocional não apenas com paisagens diversas, mas também com as personagens projetadas na tela. Assim, o cinema pode ser visto como uma viagem simbólica que contempla relações sociais entre pessoas, mediadas por imagens. Nesse processo, o nosso olhar vai sendo construído e muitos valores vão sendo assimilados. O curta metragem O dia de Jerusa1 , dirigido pela cineasta Viviane Ferreira2 é apresentado dentro da produção do cinema negro no feminino3 e reflete sobre as imagens de identidade, lembranças e amores a partir do encontro de duas mulheres negras de gerações diferentes, as protagonistas Jerusa (Léa Garcia) e Sílvia (Débora Marçal). A partir do discurso critico de Homi Bhabha (1998) quando afirma a necessidade de se ler o cânone do espaço das margens, onde se esgarça o discurso que emana do centro, podemos pensar que essa narrativa fílmica de Viviane Ferreira sinaliza para o lugar de fala das minorias – distante do discurso oficial. São exemplos de vozes outras enunciando e denunciando um discurso hegemônico que está presente nos filmes de cineastas não negros/negras que desejam silenciar e, muitas vezes ignorar as vozes de uma memória coletiva. A primeira cena do curta cabe reflexões importantes onde a cantoria na periferia soa enquanto Jerusa caminha com passos suaves e um sorriso sereno no rosto. Surge Kléber (Majó Sesan), um poeta em situação de rua, que declama estrofes do poema Minha mãe, de Luiz Gama4 . Era mui bela e formosa, era a mais linda pretinha, da adusta Líbia rainha, e no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que eu tenho; dos seus mimosos carinhos, quando c’os tenros filhinhos, ela sorrindo brincava. (SILVA, 1981,p.201) 

1 Ficha Técnica do filme: Título: O Dia de Jerusa (Original). Ano produção: 2014 / Estreia 2014 (Mundial). Dirigido por: Viviane Ferreira. Gênero: Ficção. Duração: 20 minutos. Brasil. Sinopse: Um dia de Jerusa relata o encontro de. Jerusa (Léa Garcia), moradora do bairro do Bixiga, São Paulo com uma pesquisadora de opinião, Sílvia (Débora Marçal). No encontro dessas duas mulheres, identidades, memórias, afetos, diálogos ausentes, pautas silenciadas se articulam tecendo momentos de solidão, cumplicidade e felicidade. Foi selecionado para a mostra de curtasmetragens (Short Film Corner), do Festival de Cannes 2014, na França. 

2 Viviane Ferreira é cineasta, produtora e empreendedora social, advogada e designer instrucional especializada na plataforma moodle. É coordenadora de formação da Produtora Odun. 

3 No Cinema Negro feminino temos a presença protagonizadora de cineastas negras valorizando a cultura negra brasileira tirando da invisibilidade a riqueza das tradições negras que são matrizes desse fazer cultural. 

4 Filho de Luísa Mahin, foi um dos líderes da abolição da escravatura no Brasil, escritor, poeta, jornalista e advogado. Lutou brava e romanticamente – por meio de sua escrita – durante toda a sua vida pela vida dos seus. 

 A narrativa nos situa no tempo da saudade e remonta ao passado, mas aponta para a necessidade de desvelar a pauta da solidão das mulheres negras, atribuindo visibilidade a histórias silenciadas, apresenta um corpo negro no chão, com olhar firme e brilhante que nos convoca para a luta. Ao escolher como cenário o bairro do Bixiga, a diretora já revela seu posicionamento político. O Bixiga, onde se concentra uma parte da historicidade da cultura negra, está entre os bairros com maior população afrodescendente de São Paulo. No bairro, que abrange a Rua 13 de Maio e a Rua da Abolição, a cineasta marca nos espaços e cenários as consequências históricas do passado escravocrata e o que resultou da falsa abolição no dia 13 de maio de 1888. Como elo entre passado, presente e futuro, a cena denuncia de forma sutil algumas situações de vida e sobrevivência do povo negro: mendicância, moradores em situação de rua, subempregos, solidão e loucura compõem significativamente a narrativa fílmica que anuncia o roteiro. 

Cena 

Viviane nos seduz por colocar na tela diálogos que também se encerram em monólogos: a feitura do bolo de aniversário para si mesma, diálogo com a data e os possíveis / invisíveis convidados; a narrativa da mesa posta com jarra de flores, diálogo da alegria e da solidão na qual Jerusa está encerrada; a perda de paciência da pesquisadora que exatamente nesse momento de “ficar só” descobre sua aprovação no vestibular, diálogo de sua luta interna com a resposta positiva dessa para com sua luta externa. As narrativas, cujo fio condutor podem ser posicionadas como brechtianas, através do teatro épico em função de seu posicionamento estético e político, invadem O Dia de Jerusa; há tomadas nas quais até os silêncios levam o espectador a dialogar com as cenas, interagir e buscar se posicionar diante dos fatos: aquele corpo negro que declama o poema seria um sujeito louco e por isso está na rua ou um sujeito em situação de rua que enlouqueceu por estar na rua? De que época vem à tona sua lucidez? Tais indagações nos levam a identificar o intuito didático do teatro brechtiano, a intenção de apresentar um "palco científico" capaz de esclarecer ao público sobre a sociedade e a necessidade de transforma-la: capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele suscitar a ação transformadora. Convencido da necessidade da intervenção transformadora, diz Brecht: “distanciar quer dizer historicizar, ou seja, representar fatos e pessoas como elementos históricos, como elementos perecedores. E o novo espectador será recebido como o grande transformador, o que tem conseguido intervir nos processos da natureza e nos processos sociais, o que já não se contenta em tomar o mundo tal qual e, senão que em domina-lo.” Vendo as coisas sempre tal como elas são, elas se tornam corriqueiras, habituais, naturalizadas e, por isso, incompreensíveis. Estando identificados com elas pela retina, não as vemos com o olhar épico da distância, vivemos mergulhados nesta situação petrificada e ficamos petrificados com ela. Alienamo-nos da nossa própria forca criativa e plenitude humana ao nos abandonarmos, inertes, em uma situação habitual que se nos afigura eterna. É preciso um novo movimento desalienador através do distanciamento - para que nós mesmos e a nossa situação se tornem objetos do nosso juízo critico e para que, desta forma, possamos reencontrar e reentrar na posse das nossas virtualidades criativas e transformadoras. Como mulher negra e cineasta, os trabalhos de Viviane Ferreira, espelham compromissos, ao mesmo tempo em que devolvem à sua comunidade o protagonismo da história. São narrativas de superação, rompimentos e afetos construídas sob o zelo de um fazer cinema que humaniza e plenifica as subjetividades da população negra. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ARAÚJO, J. Z. (Org.). O Negro na TV Pública. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2012. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG, 1998. 
BRECHT, Bertold. Escritos Sobre Teatro, tomo 1, cap. Vll. 
EVARISTO, C. Becos da memória. Santa Catarina: Mulheres, 2013. 
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Minas Gerais: Editora UFJF, 2010.
 _____________. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008. 
PIRES, Rosane Viana. Narrativas Quilombolas: Negros em Contos, de Cuti e Mayombe, de Pepetela. Dissertação de Mestrado, UFMG. 1998. 
RICOEUR, P. 2007. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas, Unicamp, 536 p SELIGMANN-SILVA, Marcio. História, memória, literatura – o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

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