NEGRIARA
Poucas
coisas tocam tanto a variadas pessoas quanto discussões sobre romances.
Isso talvez por esse tema nos remeter à sexualidade e à família, temas
vistos como muito importantes por quase tod@s em nossa sociedade.
Filmes, programas de TV, literatura, histórias imemoriais, há muito que
se contar sobre isso. Muito se fala sobre romantismos e
anti-romantismos, todavia, um ou outro pólo não explora a infinidade de
elementos envolvidos em relações dessa natureza.
Se é sabido
que todas as pessoas do mundo não se comportam da mesma maneira, no
assunto aqui tratado não seria diferente. Falando aqui do grupo social
de pele negra, é notório que, apesar da grande variedade que abriga, são
pessoas desconsideradas em sua origem cultural e em suas
características, com um passado e um presente de dificuldades e
privações, contudo, de resistência e criatividade, é sempre bom
destacar.
Imaginem a maneira de se comportar diante da
escravização, da discriminação, de diversas formas de violência. Bell
Hooks, mulher negra, ativista e escritora norte-americana, fala em um de
seus escritos, que a escravização e seus efeitos impactaram
profundamente o ato de amar, isso se deu tanto da parte do grupo negro,
quanto da parte dos outros grupos raciais que com ele vêm se
relacionando (ou negando se relacionar!). A desumanização da pessoa
negra, infelizmente até hoje em operação, impacta a sociedade como um
todo e cria formas e formas de vínculos. Se mulheres de todas as cores
são discriminadas pelo machismo, se negr@s de todos os gêneros são
discriminad@s pelo racismo, é de se considerar a junção de
discriminações que carregam as mulheres negras, sem contar as tantas
outras marcas que na vida carregamos.
Quem nunca se
questionou pelo fato de as mulheres consideradas bonitas na
televisão/cinema serem quase sempre brancas ou com traços próximos a
isso? Qual a razão de em nossa sociedade as musas da poesia, da música e
das artes em geral, retratarem positivamente só tipo e cotidiano da
?delicada? mulher branca, retrato que em quase nada retrata a vida das
negras? As mocinhas, as mulheres consideradas ?dignas?, as princesas,
bonecas e demais figuras formadoras dos padrões e gostos serem
majoritariamente brancas e tudo que remete a negritude ser considerado
feio, impuro, animalizado?
E por qual motivo as piadas,
cantadas e outros ditos populares, colocam a pessoa negra em local de
ridículo e negação? ?Mulher branca pra casar, mulata pra fuder, preta
pra trabalhar...?, ?nega do cabelo duro...?, ?neguinha safada...?, ?nega
do suvaco fedorento...?, ?nega metida e abusada...?, ?não é que eu sou
racista, mas negra é mesmo feia, é meu gosto?, entre outras atrocidades
encaradas como ?tranquilas? expressões de opinião individual. Linguagem
criadora e criatura de uma pulsão intolerante de violência e morte.
O
racismo só se manifesta diretamente? Não e não! Agressões físicas e
verbais diretas manifestam racismo sim, mas não só elas. Falta de
representação é racismo violento! Desamor e desafeto também! Negação da
história de um povo também é! Olhares, emanações, expressões, diversas
formas de tratamento podem ser racismo que, se somado ao longo da vida,
mata trajetórias e gera incríveis feridas em toda uma população, tolhe
seu caminho. Todo um leque de ação no mundo vê e trata @ sujeit@ negr@
como alvo de violações, ainda que de forma supostamente velada e
inconsciente.
Voltando ao papo dos romances, é comum
ouvirmos pelas ruas mulheres negras dizendo: ?Faço tudo pela pessoa que
amo, mas ela nunca assume um relacionamento comigo?; ?Comigo só querem
sexo?; ?Me disseram que sou maravilhosa em tudo, que torcem pra eu ser
feliz, mas que é melhor não se envolver...?, ?Na hora da paquera já
chegam junto sem o menor cuidado, como se eu estivesse à disposição?;
entre outras pérolas, isso quando há histórias pra narrar, pois é muito
comum não haverem interações por sermos ignoradas. Sem contar as
famílias nas quais, se alguém que as integra se relaciona com pessoas
negras, geralmente ess@ alguém é desaprovad@ e a parceira é agredida por
todo lado, inclusive pel@ parceir@ que geralmente não segura à barra e
não vence seu próprio racismo arraigado. A possibilidade de filh@s
negr@s é execrada, somos negadas em carne e alma.
Não é à
toa que muitas mulheres negras envelhecem e morrem como vítimas de
violência doméstica, chefas solitárias de lares inteiros, mães
solteiras. Ainda sendo abordadas como mucamas que eram estupradas pelo
senhor de escrav@s, amas de leite e babás dos filhos de mães brancas,
corpos para turismo e exportação genocida, mulheres que se doaram muito e
depois permanecem solitárias, zeladoras da casa e de todo capricho
imposto pelo poder pigmentocrático.
Se a pessoa negra ocupa o lugar
do que é feio, perigoso, impuro, incapaz, animalizado, do que deve só
servir, como poderia essa pessoa ser desejada/vista como possível
companheira, esposa, alguém que merece carinho, alguém para dar
continuidade aos laços parentais e às tradições da família? Os gostos e
intenções brotam da mente, mente bastante fruto da história e da
cultura; nada é tão por acaso. Coloquemos todos os nossos gostos e
desejos sob análise e vejamos o que os direciona.
Não
adianta pessoas não negras dizerem que quem mais se discrimina é @
própri@ negr@, isso é querer tirar o corpo fora. Francamente, não é ato
de heroísmo manter intacta a auto-estima quando o mundo só oferece
desrespeito? Bem sabemos que não somos tratadas como delicadas ou
frágeis, sabemos também que não queremos ser isso ou aquilo. Exigimos é
sermos olhadas como seres integrais que podem ser da forma que quiserem
ser. Mulheres de todas as cores não são simples objetos do desejo
alheio!
Um dia ouvi uma história sobre a filha de uma amiga:
?Mãe, gosto de um menino na escola, mas ele não me quer porque diz que
sou uma preta feia...?. A menina achava que o problema era ela, sofria
com esse peso; afinal ninguém agüenta carregar um erro histórico como se
fosse algo só seu. (Daí a importância da coletivização! Da troca com
quem vive a mesma coisa!). Então, a mãe belamente respondeu: ?Filha,
problema dele que é limitado, que só vê um tipo de beleza, azar dele que
não tem olhos pra ver as várias belezas no mundo?. Linda resposta
afirmativa! Será que o problema é só nosso, ou é, sobretudo, de uma
sociedade limitada em seus arranjos e formas de percepção?
Mulheres
negras em idade avançada costumam já ter uma história de poucos
resultados na vida afetivo-sexual. Mulheres negras jovens não foram ou
são as noras ideais do passado ou as minas descoladas do presente, peso
de lugares e não lugares, poucos espaços de livre-expressão. Contudo,
estamos sempre na glória de nossas reinvenções na maneira de existir
apesar, a levar, transitando margens e cantando estradas. Sejamos nosso
centro!
Há quem tenha a coragem de dizer que um artigo como
esse é vitimização, o que nos soaria como insensibilidade em não encarar
a força dos fatos. A intenção é que nós negras nos leiamos aqui como
legítimas figuras de resistência que, como a terra, fazemos brotar
flores do lodo. Como a terra, continuamos ocupando posições fundamentais
na reprodução física, econômica e cultural de uma sociedade que nos
rejeita. Ainda assim, sempre é tempo de exigir o que de nosso é o bem e o
direito; mudar nosso foco, gritar por órgãos que possam captar o
profundo de nosso toque, cheiro, gosto, visão, sons. E que possam nos
oferecer tudo isso também. Há que se expandir a percepção. Há que se
sentir novas linguagens ou esse mundo não será possível para nós. Ainda
assim escolho primeiro festejar, ?Vem celebrar comigo, que todo dia
alguma coisa tentou me matar, e fracassou...?. Somos sobreviventes,
somos vivas viventes!
Ser
mulher e ser negra no Brasil significa está inserida num ciclo de
marginalização e discriminação social. Isso é resultado de todo um
contexto histórico, que precisa ser analisado na busca de soluções para
antigos estigmas e dogmas.
A abolição da escravatura sem planejamento
e a sociedade de base patriarcal e machista, resulta na situação atual,
em que as mulheres afro-descendentes são alvo de duplo preconceito, o
racial e o de gênero.
Ascender
socialmente é algo muito difícil para a mulher negra, são muitos
obstáculos a serem superados. O período escravocrata deixou como herança
o pensamento popular, em que, elas só servem para trabalhar como
domésticas ou exibindo seus corpos.
As que se destacam, tiveram que
provar mais vezes do que as mulheres brancas a sua competência, por
isso, é que é possível afirmar que a questão de gênero é um complicador,
mas se esta for somada a questão de raça, o resultado é maior exclusão e
dificuldades.
Analisando dados de pesquisas realizadas pelo DIEESE e
outros órgãos, é possível verificar que o preconceito resulta em
salários mais baixos para os negros em relação aos brancos, incluindo o
item gênero, inferi-se que o homem negro ocupa um patamar abaixo do da
mulher branca quanto ao rendimento salarial. Mas as mulheres negras se
encontram ainda mais abaixo na pirâmide ocupacional.
No que diz
respeito a escolaridade, pesquisa realizada em 2006, revela que entre as
mulheres negras com 15 anos ou mais, a taxa de analfabetismo é duas
vezes maior que entre as brancas, no que tange ao trabalho doméstico
infantil, 75% das trabalhadoras são meninas negras.
Devido à extrema
pobreza, as meninas ingressam muito cedo no mercado de trabalho, sendo
exploradas pela sociedade, que sabendo da sua condição financeira,
oprime e humilha. Como é possível verificar, para as mulheres
afro-descentes o mercado reserva as posições menos qualificadas, os
piores salários, a informalidade e o desrespeito.
Apesar dos avanços
alcançados pelas mulheres no mercado de trabalho, ocupando posições
importantes a nível profissional, este avanço é muito reduzido quando se
observa o universo negro. Há poucas mulheres negras trabalhando como
executivas, médicas, enfermeiras, juízas, dentre outras profissões de
destaque; o que se verifica ainda é a grande maioria realizando
trabalhos domésticos e recebendo baixos salários.
Mesmo as que
possuem diploma universitário, sofrem as discriminações do mercado.
Muitas não conseguem exercer a profissão que se dedicaram na
universidade e sem opção continuam exercendo as mesmas profissões de
outrora.
Quando o item analisado é a saúde, verifica-se a
continuidade da desigualdade. O percentual de mulheres negras que não
possuem acesso ao exame ginecológico é 10% superior ao número de
mulheres brancas; pesquisa de 2004 revela que 44,5% das mulheres negras
não tiveram acesso o exame clínico de mamas, contra 27% das mulheres
brancas; entre 2000 e 2004, a infecção por HIV/AIDS subiu de 36% para
42,4% entre as mulheres negras, enquanto na população feminina branca, a
incidência de casos diminuiu, no mesmo período.
Vale salientar,
ainda, que as mulheres negras possuem menor acesso a anestesia durante o
parto e a esterilização cirúrgica; apresentam menor expectativa de vida
se comparada as mulheres brancas; e, 58% dos óbitos de jovens negras
por causas externas referem-se a assassinatos.
Além da violação ao
direito a um trabalho digno, a ascensão social, a educação e saúde, as
mulheres negras são as mais vulneráveis quando o assunto é violência,
isso porque, desde a época da escravidão a mulher negra é vista como
objeto sexual, povoando as fantasias dos homens.
A mulher negra então
é aquela que não possui vida psicológica, afetiva e intelectual.
Enquanto a mulher branca era ”guardada e vigiada”, a mulher negra era
submetida ao abuso sexual, ao estupro e a humilhações. No período
escravocrata estuprar uma negra não era crime, e sim um sinal de
virilidade do homem branco.
A mulher negra, por diversas vezes têm se
mostrado a mantenedora da família, não só no contexto atual, em que
sozinha criam e educam seus filhos, como também no passado. Isso por
que, após a abolição e a imigração européia, não havia mercado de
trabalho para o homem negro, coube a mulher negra o sustento da família,
trabalhando nas casas dos ex-senhores ou vendendo quitutes.
Além de
criarem seus filhos, abriram casas de candomblé, criaram seus
filhos-de-santo e mantiveram vivos os laços comunitários originários da
África. As fundações das casas de Axé foram imprescindíveis para a
preservação da cosmovisão africana, da identidade e da cultura negra, da
religiosidade que perpassa por todas as esferas da vida do povo
africano. Foram estas casas que preservaram a tradição do culto aos
orixás, bacuros, inquices e voduns, e as línguas africanas.
Enquanto
na visão do colonizador a mulher possuía uma posição inferior, na
cosmovisão africana as mulheres tinham e têm lugar de destaque, nas
religiões de matriz
africana elas são guardiãs dos segredos,
zeladoras do povo de santo, e um dos atores responsáveis pela
perpetuação da cultura e da reconstrução da identidade negra no país.
Uma
questão importantíssima a ser analisada com relação ao vagaroso
progresso da efetivação dos direitos das mulheres negras, é quanto a
representatividade política destas. Não há um contingente significativo
de mulheres negras no parlamento, isso resulta muitas vezes na falta de
criação e concretização políticas públicas voltadas para esta parcela da
população.
As políticas implantadas são em sua maioria de cunho
genérico, e num universo de desigualdades social, racial e de gênero é
necessário a realização de políticas públicas específicas para as
mulheres negras, posto que, são as mais vulneráveis em casos de
ocorrência de violação de direitos humanos.
A mulher negra precisa
ser valorizada não só pelos deliciosos quitutes, pelo seu molejo
contagiante, pelo corpo sensual, mas principalmente pelas suas
qualidades como ser humano, pelos seus dotes intelectuais. O mundo tem
mostrado que é tempo de mudança, os Estados Unidos da América elegeu um
presidente negro, os avanços raciais estão ocorrendo.
A melhoria da
posição social do negro e especificamente da mulher negra é resultado de
um esforço gigantesco. Homens e mulheres afro-descendentes têm lutado
para levar dignidade ao povo negro, resgatar a sua identidade e auxiliar
na busca da ascensão social.
O movimento negro brasileiro, algumas
autoridades engajadas e outras pressionadas pela sociedade têm lutado
para que o negro tenha o lugar que sempre mereceu, que o negro seja
tratado com dignidade. Nesta luta surgiram os movimentos feministas, na
busca pela implementação de leis que garantam os direitos básicos das
mulheres negras.
É preciso lembrar que algumas contra toda
adversidade conseguiram chegar a universidade, alcançaram um lugar de
destaque na sociedade, mas as barreiras continuam. Não é possível haver
satisfação enquanto outras continuam nos guetos passando fome, sofrendo
as humilhações desta sociedade desigual e opressora.
O povo negro
brasileiro está se organizando, as mulheres negras precisam “tomar” o
poder, comandar seu destino, lutar, se organizar, transformar. Há de
chegar o dia, em que vê uma negra recebendo diploma na área de medicina,
advocacia,
odontologia, não causará mais espanto, porque teremos alcançado a tão almejada igualdade.
As
mulheres negras, necessitam reencontrar a sua identidade, valorizar sua
história e suas raízes, se assumir enquanto afro-descendentes e agentes
ativos desse processo de democratização racial.
Por Walkyria Chagas da Silva Santos
Pós-graduanda em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia -UFBA
E-mail: kyriachagas@yahoo.com.br
PARA SABER MAIS:
SILVA, Maria Nilza da. A mulher negra. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/022/22csilva.htm.
PRAXEDES,
Rosângela Rosa. Mulheres negras: reflexões sobre identidade e
resistência. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/026/26rpraxedes.htm.
A mulher negra e pobre no Brasil. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/a-mulher-negra-e-pobre-no-brasil.
http://www.dieese.org.br/esp/estpesq14112005_mulhernegra.pdf
http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/estado/2007/05/10/ult4530u46.jhtm
www.casadeculturadamulhernegra.org.br
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, 2008
Demétrio Cherobini
Só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão.
Rita Lee e Zélia Duncan
Com
a proximidade do Dia Internacional da Mulher ganha força a exigência de
se refletir acerca de um tema que interessa a todos nós da classe
trabalhadora: através de que parâmetros se pode orientar uma luta
coerente e radical pela realização de uma comunidade humana na qual
estejam definitivamente abolidas as práticas sociais - que de múltiplas
maneiras se expressam - de subordinação hierárquica e discriminatória
das mulheres em relação aos homens? Em outras palavras: que tipo de
igualdade se deve buscar? A condição para a resolução dessas questões é a
máxima clareza possível a respeito do conjunto de relações que
organizam o sociometabolismo humano no contexto onde atualmente se dão
as batalhas pela emancipação feminina.
É necessário, então, que
nos perguntemos: o que é que define, em todos os períodos de sua
supremacia histórica, o ser da relação-capital? Em Para além do capital:
rumo a uma teoria da transição, o filósofo húngaro István Mészáros
apresenta-nos uma resposta clara, sintética e precisa:
"As
características essenciais que definem todas as possíveis formas do
sistema do capital são: a mais elevada extração praticável do trabalho
excedente por um poder de controle separado, em um processo de trabalho
conduzido com base na subordinação estrutural hierárquica do trabalho
aos imperativos materiais da produção orientada para a acumulação -
'valor sustentando-se a si mesmo' (Marx) – e para a contínua reprodução
ampliada da riqueza acumulada. As formas particulares de personificação
do capital podem variar consideravelmente, contanto que as formas
assumidas se moldem às exigências que emanam das características
definidoras essenciais do sistema." (2002, 781)
Eis aí, portanto,
a essência da estrutura de relacionamento social hoje hegemônica sobre a
superfície do globo e que nos domina a todos: uma forma fetichista e
hierárquica de controle sobre a atividade produtiva humana, que se
estabelece a fim de lhe extrair, num movimento sempre acumulativo e
expansivo, a maior quantidade possível de trabalho excedente.[1]
Paradoxalmente, tal sistema é o fruto da própria ação coletiva dos seres
humanos, que, em certa época histórica, se autonomizou, voltou-se
contra eles e passou a subjugá-los, compondo uma realidade profundamente
antagônica na qual a criatura é a senhora dos seus criadores. Por tais
razões, Marx definiu o capital como sendo a contradição em processo.
Mészáros
se esforça, em seu magistral estudo, em desvelar o modo como esse
sistema se organizou a partir de uma articulação dinâmica entre suas
inúmeras partes constituintes – o capital é, no dizer do filósofo, um
sistema de mediações -, cada uma delas inerentemente contraditória, que
vai desde a família nuclear, os meios alienados de produção e o
dinheiro, passando pelos objetivos fetichistas de produção e o trabalho
"estruturalmente separado da possibilidade de controle", até as várias
formas de Estado do capital e o "incontrolável mercado mundial", em cuja
estrutura os participantes da atual ordem sociometabólica devem se
integrar e se adaptar.[2]
O capital, diz o filósofo húngaro, não
inventou todas as mediações materiais contraditórias que lhe conformam o
ser. Algumas delas existem há milênios, como, por exemplo, a divisão
hierárquico-estrutural do trabalho, que antecede historicamente em muito
as formas embrionárias do capital. Entretanto, no momento em que este
sistema se tornou hegemônico sobre a atividade produtiva humana,
assimilou tal divisão, que veio a se constituir mesmo em um dos seus
componentes fundamentais.
Nesse processo, esta mediação
particular – a divisão hierárquica do trabalho - adquiriu novas
determinações e, coadunada com todas as demais mediações do sistema,
passou a compor a especificidade do complexo do capital como processo
acumulativo e expansivo de exploração de trabalho excedente. "O mesmo
acontece, diz Mészáros, com todas as formas de dominação historicamente
precedentes: elas se subordinam ou são incorporadas às mediações de
segunda ordem específicas do sistema do capital, da família às
estruturas de controle do processo de trabalho, e das variadas
instituições de troca discriminadora até o quadro político de dominação
de tipos muito diferentes de sociedades." (2002, 206-7)
O mesmo
acontece, pois, com a subordinação hierárquica e discriminatória das
mulheres em relação aos homens. O capital, historicamente, não foi o
responsável por produzir esse tipo peculiar de relacionamento
contraditório. Contudo, uma vez que o sistema se tornou dominante sobre o
metabolismo social humano, passou a englobar tal conflito e a se servir
dele para realizar seus propósitos de exploração material. Daí a
impossibilidade de, no interior do sistema do capital, as mulheres
conseguirem mais do que uma igualdade meramente formal em relação aos
homens e de atingirem, enfim, uma emancipação verdadeiramente digna
deste nome.
Mészáros afirma que, dentro dos limites da ordem
atual, é até possível encontrar algumas "ilhas" de relacionamentos
igualitários, verdadeiramente horizontais, entre homens e mulheres, no
meio do "oceano" de submissão e discriminação do sistema, mas tais casos
não passam aí de eventos isolados. Nas palavras do filósofo:
"Pares
isolados podem ser capazes de ordenar (o que certamente fazem) seus
relacionamentos pessoais em verdadeira igualdade. Na sociedade
contemporânea existem até mesmo enclaves utópicos de grupos de pessoas
que interagem comunitariamente e podem se afirmar engajados em relações
interpessoais não-hierárquicas humanamente satisfatórias e em formas de
criar os filhos muito diferentes da família nuclear e suas
fragmentações. Não obstante, nenhum desses dois tipos de relação pessoal
pode se tornar historicamente dominante no quadro do controle
sociometabólico capitalista. Sob as circunstâncias prevalecentes, o
übergreifendes Moment [isto é, o momento predominante – neste contexto, o
macrocosmo do capital] determina que os microcosmos da reprodução devem
ser capazes de se aglomerar num conjunto abrangente que não pode, de
forma alguma, funcionar numa base de verdadeira igualdade. O menor de
todos os 'microcosmos' da reprodução deve sempre proporcionar sua
participação no exercício global das funções sócio-metabólicas, que não
incluem apenas a reprodução biológica da espécie e a transmissão
ordenada da propriedade de uma geração à outra. Nesse aspecto, não é
menos importante seu papel essencial na reprodução do sistema de valores
da ordem estabelecida da reprodução social, totalmente oposto – como
não poderia deixar de ser – ao princípio da verdadeira igualdade."
(ibid., 269-70)
Ou seja, os "microcosmos da reprodução" - isto é,
as famílias nucleares – estabelecem uma relação dialética com o
"macrocosmo" do capital. Mas, em virtude desta instância ser o "momento
predominante" da relação, as transformações históricas que porventura
ocorram na estrutura das famílias devem se ajustar aos parâmetros mais
amplos do complexo social do qual fazem parte - justamente, o sistema
hierárquico de exploração de trabalho excedente. Ainda que essa
determinação não seja absoluta – o que se comprova pelo fato de haver
casos alternativos isolados de real horizontalidade –, o sistema vai
sempre forçar suas microestruturas a reproduzir, a partir do seu
interior, o sistema de valores necessário para a perpetuação da ordem
maior. A subordinação das mulheres, portanto, apesar de não ter sido
criada pelo capital, é reforçada por ele diuturnamente com o auxílio dos
"microcosmos" que o sistema exige para prolongar no tempo e no espaço a
sua vigência.
Mészáros explica que o capital perpetuou a
subordinação das mulheres e se serviu dela historicamente de várias
maneiras. Na família, como foi dito, reproduzindo os valores
discriminatórios, antagônicos à horizontalidade das relações sociais e
necessários para a manutenção da macroestrutura hierárquica de
exploração da atividade produtiva. No "mundo do trabalho", por sua vez,
atribuindo às mulheres, na mais larga escala, uma remuneração inferior à
dos homens. Nesse contexto, diz o filósofo, apesar de se verificar a
existência de algumas conquistas históricas – possibilitadas, entre
outras coisas, pela expansão do capital em sua fase ascendente –, elas
tendem a ser negadas na prática nos momentos em que o sistema porventura
enfrentar dificuldades maiores para a realização da acumulação de
capital – como na atual época de crise estrutural, por exemplo.
Mészáros
assinala ainda que nem no campo da política a igualdade, a participação
eqüitativa das mulheres em comparação com os homens, se materializou de
forma efetiva. Isso se deve precipuamente ao fato de que, no sistema do
capital, o Estado não tem, entre suas atribuições, a tarefa de promover
a igualdade real entre os participantes de tal ordem sociometabólica.
Por ser uma mediação constituinte indispensável da base material do
referido complexo – fato que implica em férreas determinações -, sua
função principal acaba sendo a de viabilizar – ora por meios diretos,
ora por meios indiretos - a reprodução dessa mesma estrutura de controle
hierárquica e discriminatória da qual ele é um dos elementos
essenciais. O capital, diz o filósofo húngaro, nos momentos favoráveis
para sua expansão, é até capaz de acolher, através do Estado, algumas
das demandas sociais particulares de cada conjuntura histórica, desde
que estas não modifiquem a estrutura mais íntima do "macrocosmo" do
capital – ele não pode, portanto, proporcionar nada mais do que
igualdade formal entre as pessoas.[3]
Ora, uma vez que as
diversas contradições no plano do relacionamento social humano, criadas
historicamente, se integram e se articulam organicamente dentro do
grande sistema contraditório de produção e reprodução do capital, o
objeto a ser negado – as "cadeias radicais" -, para todos aqueles que aí
se encontram nas mais variadas posições de subordinação estrutural
hierárquica, torna-se rigorosamente o mesmo: o próprio macro-sistema de
exploração de trabalho excedente, com todas as suas correspondentes
micro-estruturas de reprodução de valores e práticas sociais
discriminatórias. Em outras palavras: além das demandas particulares
inerentes à posição de cada grupo, há também uma contradição
fundamental, que a todos afeta, e que deve, por isso, se converter em
foco canalizador de suas plurais energias combativas.
Concomitantemente,
a nova realidade a ser afirmada torna-se um objetivo comum para as
múltiplas forças emancipadoras em questão: a realização de uma
comunidade humana na qual estejam definitivamente superados os modos de
relacionamento social organizados a partir de antagonismos estruturais
hierárquicos e discriminatórios - ou seja, a configuração da sociedade
dos produtores associados de forma livre, autônoma, cooperativa,
sustentável, horizontal e consciente.
Aqui, no entanto, é cabível
a seguinte pergunta: diante das tantas derrotas históricas dos
movimentos que visavam à superação da ordem do capital, o que nos leva a
pensar que a sua derrocada seja possível em nossos dias? Responde
Mészáros: justamente, a nova época de crise estrutural do sistema do
capital, na qual nos situamos, onde esta macro-estrutura se desenvolveu a
tal ponto que acabou por produzir contradições potencialmente
explosivas, para si e para todos os que se encontram no seu interior, e
que comprometem por isso a sua viabilidade como controladora do
sociometabolismo humano.
O filósofo explica que, durante a sua
fase histórica de ascendência, o capital usou as mediações
contraditórias como "motor" do seu processo de acumulação e expansão
continuada. Com o término de tal fase de ascendência, contudo, alguns
desses antagonismos começaram a se manifestar como poderosos entraves
para o desenvolvimento do complexo global como um todo. Exatamente neste
momento – em torno do fim da década de 1960 -, teve início a chamada
crise estrutural do sistema do capital, uma situação em que a única
maneira encontrada pela ordem vigente para lidar com as suas
contradições mais problemáticas – os seus "limites absolutos" - foi
fomentar uma forma de produção que tem na destrutividade (produção
destrutiva) a sua dinâmica propulsora.
A produção destrutiva do
capital se expressa de múltiplas formas: na precarização do trabalho, na
degradação ambiental, na obsolescência planejada, no "complexo
militar-industrial" - setor fundamental da economia mundial atual, onde
as mercadorias (artefatos bélicos, etc.) se destroem imediatamente no
ato mesmo do seu consumo -, entre outras. É esta condição, na qual o
capital, para sanar algumas das suas contradições, começa a fazer uso de
remédios amargos até para si mesmo – e é isto o que configura, segundo
Mészáros, uma era de transição -, que abre, justamente, a possibilidade
objetiva para a sua transcendência positiva.[4]
O capital pode,
portanto, ser vencido. Para tanto, precisa ser energicamente negado em
conjunto, em todos os âmbitos onde faz prevalecer o seu domínio, por
todos os grupos sociais que, no interior desse complexo, se encontram
numa posição de antagonismo estrutural em relação às personificações do
capital. Mas não somente a negação é essencial para uma práxis
revolucionária radical e conseqüente. Também a afirmação, nesse
processo, adquire profunda importância. É aqui que ganha destaque a
proposta mészáriana da igualdade substantiva para a superação da ordem
social que, em nossos dias, se sustenta sobre uma miríade de estruturas
hierárquicas e discriminatórias.
A igualdade substantiva,
assinala o filósofo húngaro, é diferente da igualdade formal assegurada
pelo capital. Também não equivale ao "nivelamento por baixo", que muitos
acusam o socialismo de querer preconizar. Ela deve ser definida
qualitativamente, e não de forma meramente quantitativa. Para melhor
explicitar os fundamentos de sua tese, Mészáros recorre a Marx e a
algumas das influências políticas do célebre pensador alemão,
especialmente François Babeuf e Felippe Buanorroti.
Lemos, então, em O poder da ideologia, que
"A
igualdade deve ser medida pala capacidade do trabalhador e pela
carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela
quantidade de coisas consumidas [grifo nosso]. Um homem dotado de certo
grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto
quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta
libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de
água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe
apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de
trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos
trabalhadores." (BABEUF, apud Mészáros, 2004b, 42)
Tais são os
princípios – endossados, segundo Mészáros, por Marx - que definem a
igualdade substantiva e que precisam ser afirmados contra a forma de
sociabilidade estabelecida atualmente pelo capital. É este, pois, o tipo
de igualdade que necessitamos buscar. Não a mera equivalência de coisas
consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a
igualdade avaliada pelas capacidades e carências não alienadas dos
indivíduos sociais. É nisto que se deve basear o projeto alternativo
socialista para, na luta de classes, superar o modo de controle
sociometabólico do capital e instaurar uma nova maneira,
qualitativamente diferente, de intercâmbio e de relação entre os homens e
as mulheres e entre a humanidade e a natureza.[5] Leiamos, mais uma
vez, o que afirma o filósofo húngaro nesse sentido:
"A natureza
da nova forma [isto é, da comunidade humana emancipada] pode ser
resumida, citando as palavras de Marx, como um sistema baseado em 'um
plano geral de indivíduos livremente combinados'. Isso quer dizer, em
termos mais simples, a substituição das cadeias de trabalho impostas
pelo capital pelos elos cooperativos dos indivíduos e os vários grupos a
que eles pertencem. Por meio dessa mudança qualitativa, eles terão
condições de estabelecer uma forma superior e potencialmente muito mais
produtiva de coordenação geral do que a que é viável com base no
controle externo autoritário da mão-de-obra no sistema de trabalhos
forçados do capital." (ibid., 43-4)
Somente o controle social
instituído e realizado dessa maneira pode garantir a sustentabilidade
das relações metabólicas estabelecidas entre homens, mulheres e a
natureza. A sustentabilidade é entendida por Mészáros, nesse contexto,
justamente, como o "controle consciente do processo de reprodução
sociometabólica pelos produtores livremente associados." (ibid., 44)
Ficam definidos, desse modo, os princípios orientadores da práxis capaz
de proporcionar tanto a emancipação dos proletários,[6] quanto a
emancipação das mulheres – estas lutas, em verdade, não podem mais ser
vistas como isoladas uma da outra.
Para fazermos uso novamente das palavras do filósofo húngaro:
"sem
mudanças fundamentais no modo de reprodução social, não se poderão dar
sequer os primeiros passos em direção à verdadeira emancipação das
mulheres, muito além da retórica da ideologia dominante e de gestos de
legislação que permanecem sem a sustentação de processos e remédios
materiais adequados. Sem o estabelecimento e a consolidação de um modo
de reprodução sociometabólica baseado na verdadeira igualdade, até os
esforços legais mais sinceros voltados para a 'emancipação das mulheres'
ficam desprovidos das mais elementares garantias materiais; portanto,
na melhor das hipóteses, não passam de simples declaração de fé. Jamais
se enfatizará o bastante que somente uma forma comunitária de produção e
troca social pode arrancar as mulheres de sua posição subordinada e
proporcionar a base material da verdadeira igualdade." (2002, 303)
Fica
descartada, assim, a retórica mistificadora própria à ideologia dos
defensores da ordem estabelecida, que defende que a mera "igualdade de
oportunidades" dá conta de suprir as exigências concernentes aos
problemas da emancipação humana.
O poeta brasileiro Ferreira
Gullar, nos tempos em que ainda usava da pena como arma crítica em favor
dos oprimidos do mundo, escreveu, sobre os povos da América Latina,
algumas de suas palavras mais lúcidas: "Somos todos irmãos/ Não porque
dividamos/ O mesmo teto e a mesma mesa:/ Divisamos a mesma espada/ Sobre
nossa cabeça." Sutilmente transformado, este poema nos serve para
expressarmos sinteticamente o anseio inerente ao presente artigo. E,
nesse sentido, se levarmos em conta o fato de que a mesma espada não
está assentada apenas sobre a cabeça dos latino-americanos e sim sobre
todos aqueles que, pelos mais distantes rincões do planeta, se encontram
enredados nas múltiplas estruturas hierárquicas que realizam os
imperativos do sistema do capital, teremos uma boa imagem do tamanho do
nosso fardo e também da magnitude do nosso desafio.
Se se
aperceberem disto, os proletários e feministas conseqüentes de nossa
época histórica poderão bem andar de mãos dadas em suas lutas políticas
daqui por diante.
Notas:
[1] Com base numa leitura
particular dos escritos de Marx e sob a influência dos economistas
marxistas norte-americanos Paul Baran e Paul Sweezy – mas com algumas
sutis modificações -, Mészáros irá estabelecer a exploração de trabalho
excedente – e não meramente a da mais-valia – como elemento definidor do
ser do capital. Para maiores esclarecimentos a esse respeito, ver, além
do já referido Para além do capital, Baran (1984) e Baran e Sweezy
(1966).
[2] Estas são as assim chamadas mediações de segunda
ordem do sistema do capital. São, enquanto criações históricas,
qualitativamente diferentes das mediações de primeira ordem da atividade
produtiva. Tanto em Para além do capital quanto em Estrutura social e
formas de consciência (2009), Mészáros apresenta-nos uma lista detalhada
dos componentes de ambos os conjuntos.
[3] Por esses mesmos
motivos, esclarece Mészáros, nem nos países pós-capitalistas do século
XX se logrou superar a verticalidade das relações entre homens e
mulheres. A citação da escritora feminista norte-americana Margaret
Randall, que a seguir transcrevemos, é bastante ilustrativa de sua
concepção a respeito do tema: "Na verdade, nem as sociedades
capitalistas que tão falsamente prometem a igualdade nem as sociedades
socialistas que prometeram a igualdade e até mais, adotaram a bandeira
do feminismo. Sabemos como o capitalismo coopta qualquer conceito
libertador, transformando-o em slogan utilizado para nos vender o que
não carecemos, onde as ilusões de liberdade substituem a liberdade.
Agora me pergunto se a incapacidade do socialismo de abrir espaço para a
agenda feminista – para realmente adotar esta agenda à medida que
emerge naturalmente em cada história e cada cultura – seria uma das
razões pelas quais o socialismo não poderia sobreviver como sistema"
(RANDALL, apud Mészáros, ibid., 290). Nesse contexto, deve ser dito
também que, para o filósofo húngaro, o fato de as garantias dadas pelo
Estado não serem suficientes para assegurar a verdadeira emancipação,
não significa que as lutas no interior dessa instância específica não
sejam importantes. Elas o são, sim, e devem ser realizadas enérgica e
criticamente. O fundamental, contudo, é que esses combates estejam
articulados com a formação das mediações extraparlamentares capazes de
se assenhorear do controle sobre o metabolismo social humano de maneira
consciente e sustentável. É isto que, justamente, configura a proposta
da ofensiva socialista estabelecida por István Mészáros ao longo de sua
fecunda teorização política. Infelizmente, em virtude das limitações
deste texto, não há espaço para uma maior explanação acerca de tais
temas. Para maiores informações sobre as complexas formulações do
filósofo húngaro a respeito da relação entre o capital e o Estado, da
função e da vigência continuada desse sistema nas sociedades do chamado
"socialismo realmente existente" (com destaque para as explicações sobre
as diferenças entre a extração econômica e a extração política do
trabalho excedente) e da impossibilidade de se realizar a emancipação
das mulheres no interior desse complexo sociometabólico, remetemos os
leitores interessados especialmente aos capítulos 2, 5, 17, 18 e 22 de
Para além do capital. De nossa parte, recentemente procuramos dar uma
singela contribuição para o entendimento da concepção de Estado em
Mészáros através de um breve artigo (2011), que listamos nas
referências.
[4] É necessário explicar, nesse contexto, que, de
acordo com a teoria de Mészáros, o próprio antagonismo existente na
relação entre homens e mulheres configura hoje um dos limites absolutos
do capital – os outros três são a contradição entre o capital
transnacional e os Estados nacionais, a "eliminação das condições de
reprodução sociometabólica", isto é, a contradição entre a necessidade
de expansão infinita do capital e a finitude dos recursos naturais e
humanos disponíveis, e o desemprego crônico. Os limites absolutos - que
ao serem ativados dão início à crise estrutural do capital – são aqueles
que só podem ser eliminados pela transformação estrutural do próprio
complexo em que se inserem, com a sua conseqüente substituição por outro
modo de organização social qualitativamente diferente e viável. São
distintos, portanto, dos limites relativos do sistema, isto é, as
contradições com as quais se pode lidar dentro da ordem mesma, sem que
seja preciso alterar substancialmente seus fundamentos. Aqui, um ponto
importante deve ser frisado: a ativação dos limites absolutos do capital
e a conseqüente crise estrutural que daí emerge não significam que o
sistema esteja em vias de se acabar ou que vá implodir por conta
própria. O sistema do capital, nesta conjuntura, continua vivo, mas vivo
como um câncer – daí o termo crescimento canceroso utilizado por
Mészáros (2004) -, configurando, portanto, uma dinâmica altamente
destrutiva e agressiva. É isto que funda, justamente, a atualidade
histórica da ofensiva socialista de que fala o filósofo húngaro. Nesse
contexto, vale a pena mencionar ainda, a respeito da crise estrutural do
capital, que Mészáros tece interessantes considerações sobre as
manifestações dessa situação em termos de teoria do valor (e também do
antivalor). É impossível, contudo, dentro dos limites deste artigo,
aprofundarmo-nos sobre tais questões. Para maiores informações,
remetemos novamente os interessados à leitura de Para além do capital:
rumo a uma teoria da transição, especialmente os capítulos 5 e 16. Para
uma boa visão das implicações políticas das constatações do filósofo
húngaro, é útil ler também Mészáros (2010). Em uma recente pesquisa
teórica (2010), realizada junto à Universidade Federal de Santa
Catarina, desenvolvemos uma análise detida sobre todos esses temas.
[5]
A igualdade substantiva é, enquanto um dos princípios orientadores da
estratégia revolucionária socialista, o primum inter pares em relação
aos demais - isto é, o "primeiro entre iguais", conforme Mészáros
(2008). Em seu magnífico ensaio Socialismo no século XXI - que está
contido no livro O desafio e o fardo do tempo histórico (cit.) -, o
filósofo húngaro articula, arquimedianamente, tal princípio com outros
sete, a saber: o imperativo de se trazer à luz uma ordem alternativa
historicamente sustentável, a fim de se superar o enorme desperdício de
recursos naturais e humanos levados a cabo pela lógica capitalista do
lucro; a promoção da real participação dos "produtores associados", por
meio da transferência progressiva a estes do poder de decisão sobre a
atividade produtiva; o planejamento, que deve fazer vir à tona um modo
de organização social que não agrida as condições materiais de
existência e que torne possível a reprodução do gênero humano sobre o
planeta numa perspectiva de longo prazo; o crescimento qualitativo em
utilização dos produtos do trabalho, para que se possa combater a
destrutividade que satisfaz as demandas do capital auto-expansivo; a
complementaridade entre os âmbitos nacional e internacional nas lutas
pela emancipação humana; a unificação das esferas da reprodução material
e da política, que foram separadas pelo capital durante seu movimento
histórico auto-constitutivo; e, finalmente, a educação, realizada em
meios formais e não formais, como alavanca para se produzir o
desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas
necessários para a realização da nova forma histórica, uma educação que
se converta, em última instância, em auto-educação permanente para uma
sociedade que supere definitivamente as determinações fetichistas do
sistema produtor de mercadorias.
[6] Damos, aqui, ao conceito de
proletários, o significado preciso que Mészáros atribui a ele. Partindo
da compreensão de que o sistema do capital é uma estrutura de controle
hierarquicamente estabelecida sobre o metabolismo social, o filósofo
húngaro estabelece que proletário não é somente o empregado da fábrica,
mas todo aquele sujeito - empregado ou não, na fábrica ou fora dela -
alijado do controle consciente dos processos sociometabólicos da
humanidade. Nas palavras do autor de O desafio e o fardo do tempo
histórico: "As classes operárias industriais constituem-se, em sua
totalidade, de trabalhadores manuais, desde a mineração até os diversos
ramos da produção industrial. Restringir o agente social da mudança aos
trabalhadores manuais não é obviamente a posição do próprio Marx. Ele
estava muito longe de pensar que o conceito de 'trabalhador manual'
proporcionaria uma estrutura adequada de explicação sobre aquilo que uma
mudança social radical demanda. Devemos recordar que ele está falando
de como, pela polarização da sociedade, um número cada vez maior de
pessoas é proletarizado. Assim, é o processo de proletarização –
inseparável do desdobramento global do capital – que define e em última
instância estabelece o problema. Ou seja, a questão é como a maioria
esmagadora de indivíduos cai em uma condição na qual perde todas as
possibilidades de controle sobre a sua vida e, nesse sentido, torna-se
proletarizada [grifo nosso]." (2007, 70)
Referências:
BARAN, Paul. A economia política do desenvolvimento (Coleção Os economistas). São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BARAN,
Paul e SWEEZY, Paul. Capitalismo monopolista. Ensaio sobre a ordem
econômica e social americana. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966.
CHEROBINI,
Demetrio. Educação e política no pensamento de István Mészáros: estudo
introdutório. Florianópolis, SC: 2010. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação.
Programa de Pós-Graduação em Educação.
CHEROBINI, Demetrio. O mito do Estado como "indutor do desenvolvimento", 2011. Disponível em
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS,
István. A globalização capitalista é nefasta. (Entrevista a Brasil de
Fato), 2004. Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=3314
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004b.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS,
István. Princípios orientadores da estratégia socialista. in Margem
Esquerda – ensaios marxistas nº 11. São Paulo, Boitempo, 2008, p. 57-69.
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.
MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista. São Paulo: Boitempo, 2010.
Somos mulheres e não mercadoria!!
Desde a década de 1970 o movimento feminista levanta a bandeira do "nosso corpo nos pertence". Ela expressa o questionamento das mulheres em relação à sexualidade, à imposição de padrões e em relação à reprodução. Ela representa a autonomia das mulheres sobre seus corpos e suas vidas. E o que temos visto nos últimos anos é que este debate esta cada vez mais atual. No último período, em especial, estamos sofrendo uma série de ataques à nossa autonomia. Estamos vendo o Estado, as igrejas e os homens criarem cada vez mais artifícios para nos "prenderem" em padrões que servem ao mercado.
No Brasil, estes ataques estão cada vez mais intensos, e o exemplo mais recente é o da "guerra" que está sendo travada para tentar criminalizar ainda mais as mulheres que recorrem a um aborto. A mídia, todos os setores conservadores da nossa sociedade e, principalmente, as instituições religiosas têm feito uma verdadeira batalha para nos retirar os pequenos avanços obtidos. Essa ofensiva contra a autonomia de nossos corpos ganhou mais um ator, o Projeto de Lei que visa regulamentar a prostituição em nosso país.
Para além do que o projeto compreende, que de central é regulamentar, não só a prática da prostituição, como também o mercado que se esconde atrás dela temos que avaliar o que ele tem gerado. O debate trazido através deste projeto traz a tona as faces mais cruéis do neoliberalismo aliado ao machismo. E até os setores mais "progressistas" de nossa sociedade não compreendem que o capitalismo se apropria do sexo e mercantiliza até mesmo o desejo.
Quando falamos sobre a prostituição, não podemos deixar de avaliar o papel que a globalização e que o mercado cumprem no incentivo a sua prática. Eles representam hoje um fator central para a prostituição e para o tráfico de mulheres, trabalhando no aumento das desigualdades entre homens e mulheres. As indústrias do sexo (algumas multinacionais) geram lucros estrondosos e receitas importantes. São consideradas vitais para a economia de diversos países. Chegam a representar 5% do PIB dos países baixos e em média 8% do conjunto das atividades econômicas dos países asiáticos. Entre os países mais pobres a questão se agrava, pois o FMI e o Banco Mundial estimulam o desenvolvimento do "turismo" e do "lazer" como forma de reembolso da dívida desses países. Dessa forma, a prostituição passa a fazer parte da estratégia de desenvolvimento destes Estados.
Nesse sentido, legalizar a prostituição, na verdade, significa legalizar uma "indústria" que trabalha na expansão do tráfico de mulheres e que se apóia em uma economia subterrânea (bares, hotéis, agências, clubes). Com a prostituição e o tráfico de mulheres, lucram as companhias aéreas, o turismo e até mesmo os governos. Por isso, precisamos ter a compreensão de que a prostituição representa a mercantilização dos seres humanos e o sexo pago faz parte da estrutura que sustenta o capitalismo.
Assistimos hoje o neoliberalismo se apropriar do nosso discurso para impor sua exploração. Em nome da autonomia, do direito de controlar seu próprio corpo, passou-se a defender a legalização da prostituição. Cada vez mais a indústria do sexo é considerada um trabalho legítimo e, com o triunfo dos valores liberais, o sexo pago vem sendo normatizado. A submissão às regras do mercado e às leis contratuais liberais, além do discurso "de uma profissão como outra qualquer", ou "é um simples trabalho" e até mesmo "é uma questão de liberdade" vem sendo utilizadas na sustentação desta política liberal. Como um trabalho que se baseia na violação dos direitos humanos e na opressão das mulheres pode ser considerado legítimo?
Outro argumento comumente utilizado é o de que legalizar a prostituição significa melhorar a vida das mulheres que fazem parte desta rede, oferecendo direitos e garantias que todos os trabalhadores possuem. Em primeiro lugar, a legalização representa um ganho, de verdade, é para o crime organizado, pois o que se normatiza é o mercado, a compra e a venda de mulheres. Mesmo onde a prostituição é legal (Alemanha, Suíça, Grécia, etc.) o papel do crimeorganizado continua sendo fundamental na organização deste mercado e uma minoria das prostitutas se registra para ter acesso aos direitos sociais. A maior parte continua sob a "tutela" dos cafetões. Cada vez que uma menina "escolhe" ser prostituta, como se realmente ela tivesse outra opção, tem atrás de si toda essa rede que engloba cafetões, tráfico, crime organizado e etc. Além disso, pesquisas comprovam que 80% das pessoas prostituídas foram vítimas de algum tipo de violência na juventude, o que contradiz o debate de que seria uma "escolha". A defesa da legalização da prostituição é liberal, pois é baseada na visão onde o individuo escolhe seu caminho e onde as relações humanas estão submetidas ao dinheiro. A prostituição surge do liberalismo e não da liberdade.
Para nós, feministas e socialistas, é inadmissível que as mulheres sejam reduzidas a mercadoria, podendo ser compradas, trocadas, usadas e alugadas. Temos uma visão libertária de sexualidade, que é baseada na igualdade e não na dominação. A relação de poder é constitutiva da nossa organização social e também está presente no sexo. No sexo pago, essa relação se reproduz com o "comprador" tendo total domínio sobre a "mercadoria". Essa "coisificação" e a mercantilização das mulheres têm como função a submissão de um sexo à satisfação dos prazeres sexuais do outro. Por isso, lutamos contra a prostituição. Lutar contra é lutar pela igualdade, que só existirá quando homens não puderem mais vender e nem explorar mulheres.
Amanda Mendonça é ex-diretora de mulheres da UEE/RJ - Militante da Marcha Mundial das Mulheres/R