Trabalho doméstico: herança histórica do racismo e sexismo no Brasil

NEGRIARA

É sabido que existem alguns pilares que estruturam as desigualdades no Brasil. Este quadro que vivenciamos tem fortes traços marcados por dois elementos centrais na temática de desigualdade: sexismo e racismo. Além, obviamente, de outros elementos estruturantes para esse quadro, como a opressão de classe e a violência da imposição da heteronormatividade.
O papel histórico atribuído às mulheres sempre esteve relacionado ao espaço doméstico. Ambiente privado onde, destituídas da fala e de serem protagonistas de sua própria história, as mulheres ficavam à mercê das mais diversas formas de violência física, moral e psicológica, dentre outras. Ao quadro de construção de uma sociedade patriarcal e machista, soma-se a violência do racismo nesta representação, que por si só deveria gerar certo “desconforto” ou implicar em responsabilidades individuais e coletivas.
Nesse contexto, um tema de conturbada discussão se refere ao trabalho doméstico e mais especificamente às mulheres, que representam 95% das pessoas envolvidas nessa atividade, sendo que dessas 61% são mulheres negras (Fonte: PNAD, 2010). Além disso, das mulheres inseridas no mercado de trabalho, 17% estão no trabalho doméstico remunerado, o que representa em torno de 7 milhões de pessoas.
A reflexão que se traz a este quadro vivenciado pelas trabalhadoras domésticas se refere à herança histórica que a escravidão legou às mesmas. Nem é preciso uma profunda análise crítica para perceber a mentalidade da “benesse” que era concedida às trabalhadoras que tinham o “direito” de ficar na Casa Grande com os Senhores, acompanhar as Sinhás, servir de ama de leite, ser objeto sexual para a livre utilização de seus corpos pelos homens da casa e muitas vezes nem precisavam ficar na senzala com os demais negros escravizados. Afinal, do que elas poderiam reclamar? Perguntavam-se os senhores de negros escravizados.
Percebe-se a continuidade dessa mentalidade nas práticas cotidianas das/os empregadoras/es que não reconhecem o trabalho doméstico como outra atividade remunerada qualquer (com exceção da não-lucratividade), reproduzindo práticas deste período colonial Algumas/uns acreditam que esse serviço deve ser pago com “favores”, como dar as roupas usadas, por exemplo, ou que a não extensão de todos os direitos trabalhistas está relacionada à ausência de escolaridade (ensino formal), subestimando outras formas de produção de saber, inerentes a essa atividade.
Creuza Maria de Oliveira, Presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), no Seminário dos Trabalhadores Domésticos.Creuza Maria de Oliveira, Presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), no Seminário dos Trabalhadores Domésticos.
A vulnerabilidade não se refere tão somente às práticas cotidianas. O próprio Estado brasileiro compra esse discurso do “informalismo” (aqui utilizando-me de um eufemismo). Sob diversas alegações, transforma-se essa discriminação em texto legal, não estendendo às trabalhadoras domésticas todas as garantias trabalhistas. As justificativas passam pelo impacto econômico dessa extensão e pela possibilidade de diminuição do números de Carteiras de Trabalho assinadas, por exemplo.
Dessa forma, aumenta-se a vulnerabilidade das mulheres que exercem essa atividade. Tanto socialmente, no ambiente de trabalho, como legalmente, ao não ratificar a Convenção nº 189, que garante às domésticas os mesmos direitos que as/os demais trabalhadoras/es. É muita ousadia querer tratamento igualitário? E, mais uma vez, afinal, do que elas poderiam reclamar? Perguntam-se os novos senhores.
Diante desse quadro, duas coisas ficam bem explícitas. A primeira delas é que a situação das trabalhadoras domésticas deixa bem nítida as marcas do machismo e patriarcalismo brasileiro, que impõe ao corpo feminino o papel de “cuidado” do espaço doméstico, sem que isto represente uma atividade remunerada, já que a ela compete socialmente o zelo com o ambiente do lar. A segunda marca é o reconhecimento de que a precariedade e a vulnerabilidade social do trabalho doméstico são herança direta do sistema escravocrata e legado da mentalidade colonial, que ainda demonstra forte influência no pensar e no agir cotidianos e do Estado, ente que deveria garantir a equidade para todas/os.
Luana Natielle Basílio e Silva – Advogada, assessora do Cfemea e sócia colaboradora do Bamidelê

Um comentário:

  1. Trajano Oliveira31/07/2012, 18:38

    A situação da empregada doméstica tem sido, por muito tempo, uma forma de submissão de uma classe social onde a maioria é de mulheres negras. Uma vergonha para nossa sociedade elitista. Entretanto, acho muito precipitado e simplista o paradigma do feminismo que atribui todo o mal existente na sociedade ao gênero masculino. Para analisar o papel da mulher no lar (e aqui não me refiro à empregada doméstica, mas à esposa, a mãe), é preciso aprofundar mais a visão histórica onde o cuidar da prole, e garantir sua sobrevivência, em tempos primitivos, impunha o papel da mulher junto à prole em um ambiente mais protegido e ao homem cabia se aventurar para caçar ou buscar, com todos os riscos, perigos e dificuldades de então, para obter e levar o alimento até sua "família". Não era uma imposição masculina, mas uma contingência das circunstâncias de riscos e perigos durante muitos e muitos milênios, que privilegiava a mulher e o filho em segurança. Só recentemente o ambiente de busca de provisão (o trabalho) deixou de ser árduo e perigoso, graças à tecnologia e os códigos sociais o que favoreceu com que as mães passassem a preferir, deixar os cuidados do lar (e dos filhos) para participar de um ambiente externo mais excitante e "gratificante", o agora, seguro e interessante "mercado de trabalho". Portanto, não foi o machismo que privou a mulher de deixar os cuidados do lar para disputar o mercado de trabalho, mas circunstâncias culturais e sociais. Não se pode demonizar o masculino, pois existem e sempre existiram homens bons e mulheres boas, homens ruins mulheres ruins. Uma vez perguntaram ao Dalai Lama se o mundo fosse governado pelas mulheres, se seria muito melhor. Ao que ele sabiamente respondeu: Depende, se forem mulheres boas certamente será melhor.
    Voltando agora ao trabalho doméstico, uma constatação que pode ser colocada e polemizada é: este infeliz contingente de trabalho quase escravo (as empregadas domésticas)teve, quase em 100 por cento das vezes, uma mulher como patroa e não um homem.E de fato, tem sido a relação mais cruel e mais humilhante de trabalho após a escravatura.

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