Angela Davis: Obama vai aprender algumas lições no Brasil
Aos 65 anos, Angela Davis continua a mostrar por que se tornou um ícone do movimento negro norte-americano nos anos 1970. Bastam minutos de conversa com a hoje pesquisadora e professora da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA), para perceber a facilidade em expor, numa linguagem clara, linhas de raciocínio complexo, fruto do aprofundamento que marca sua produção acadêmica.
Aos 65 anos, Angela Davis continua a mostrar por que se tornou um ícone do movimento negro norte-americano nos anos 1970. Bastam minutos de conversa com a hoje pesquisadora e professora da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA), para perceber a facilidade em expor, numa linguagem clara, linhas de raciocínio complexo, fruto do aprofundamento que marca sua produção acadêmica.
Um exemplo é quando explica a visão que tem do feminismo, para além do embate de gênero. A jovem ativista de outrora continua também a fascinar a juventude.
Este segmento foi o público mais constante nas palestras que ela
realizou, na última semana, em Salvador, como convidada da 12ª Edição da
Fábrica de Ideias, programa anual sediado no Centro de Estudos
Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ceao/Ufba ).
Coordenada pela doutora em sociologia Ângela
Figueiredo e pelo doutor em antropologia Lívio Sansone, a Fábrica
oferece treinamento para jovens pesquisadores em estudos étnicos.
Angela Davis,
inclusive, discorda de quem costuma apontar a juventude do mundo atual
como apática, do ponto de vista político. Para ela, cada geração tem sua
forma própria de atuação.
“A minha postura é a de aprender com os jovens, porque sempre são eles que provocam as mudanças radicais”, afirma.
Candidata pelo PC dos EUA
Angela tornou-se bastante conhecida nos anos 1970, como integrante do
Partido Comunista dos Estados Unidos e dos Panteras Negras, por sua
militância pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social e
racial nos Estados Unidos e por ser personagem de um dos mais polêmicos
e famosos julgamentos criminais da recente história americana.
Angela nasceu no estado do Alabama, um dos mais racistas do sul dos
Estados Unidos e desde cedo conviveu com humilhações de cunho racial em
sua cidade.
Nos anos 60, Angela tornou-se militante do partido e participante
ativa dos movimentos negros e feministas que sacudiam a sociedade
americana da época.
Em 7 de agosto de 1970, três rapazes interromperam o julgamento de
James McClain, acusado de ter esfaqueado um policial. Os três retiraram o
juiz, o promotor e vários jurados para uma van estacionada do lado de
fora.
No tiroteio que se seguiu com a perseguição policial ao grupo, dois
rapazes foram mortos pela polícia. O incidente também terminou com a
morte do juiz Harold Haley com um tiro na garganta.
O promotor raptado ficou paralítico com um tiro da polícia. A polícia
afirmou que a arma de um dos rapazes estava registrada em nome de
Angela Davis.
Com sua prisão decretada pelo estado da Califórnia e o FBI em seu encalço, Ângela
fugiu do estado e desapareceu por dois meses, sendo alvo de uma das
maiores caçadas humanas do país na época, acompanhada dia a dia pela
mídia, até ser presa em Nova York em outubro.
O julgamento de dezoito meses que se seguiu, colocou uma mulher
negra, jovem, bonita, culta e politizada, assessorada por uma equipe
brilhante de advogados, no centro das atenções da imprensa americana.
Dezoito meses após o início do julgamento, Angela foi inocentada de
todas as acusações e libertada. John Lennon e Yoko Ono lançaram a música
Angela em sua homenagem e os Rolling Stones gravaram Sweet Black Angel
em sua homenagem.
Angela Davis
candidatou-se a vice-presidente dos Estados Unidos em 1980 e 1984 como
companheira de chapa de Gus Hall, presidente do Partido Comunista
americano, tendo votação irrisória. Continuou sua carreira de ativista
política e escreveu diversos livros, principalmente sobre as condições
carcerárias no país.
Nos últimos anos continua a fazer discursos e palestras
principalmente em ambientes universitários e se mantém como uma figura
proeminente na luta pela abolição da pena de morte na Califórnia. Em
1977-1978 foi-lhe atribuído o Prêmio Lênin da Paz.
Nesta entrevista concedida à repórter Cleidiana Ramos, do jornal
baiano A Tarde, com o auxílio da tradutora Raquel Luciana de Souza,
Angela Davis falou,
dentre outros assuntos, sobre as lições que o governo brasileiro pode
oferecer a Barack Obama, em relação a uma política de maior aproximação
com a África.
A TARDE — É a segunda vez que a senhora vem à Bahia. O que notou sobre a questão racial e de gênero aqui?
Angela Davis — O termo feminismo
é ainda bastante contestado, como também é contestado nos EUA. Mas, eu
descobri que há mulheres ativistas que estão fazendo um trabalho
bastante semelhante. Então, nesse sentido, não faz diferença como uma
pessoa se identifica. Tem mulheres que estão trabalhando nessas questões
de violência contra a mulher, assistindo vítimas dessa violência e, ao
mesmo tempo, pensando em formas de se erradicar um fenômeno que é uma
pandemia por todo o mundo. São questões que eu acredito que perpassam as
fronteiras nacionais. Acredito que ativistas nos EUA podem aprender
muito com ativistas aqui do Brasil.
Ao que atribui a resistência ao termo feminismo?
Há essa resistência ao termo feminismo
porque pressupõe-se que se adotem posições vazias: Há posições
antimasculinas, anti-homem. Quando feministas brancas formularam pela
primeira vez essa noção de direitos das mulheres, elas estavam somente
prestando atenção à questão de gênero e não prestavam atenção à questão
de raça e de classe. E nesse processo elas racializaram gênero como branco e colocaram uma questão de classe como uma classe burguesa, mas as feministas negras argumentaram que você não pode considerar gênero sem considerar também a questão de raça, a questão de classe
e a questão de sexualidade. Então isso significa que as mulheres têm de
se comprometer a combater o racismo e lutar tanto em prol de mulheres
como de homens.
É uma visão bem diferente daquela que a maioria das pessoas tem sobre feminismo.
O tipo de feminismo que eu abraço não é um feminismo divisivo. É um feminismo
que busca a integração. Mas, como disse anteriormente, estou mais
preocupada com o trabalho que as pessoas fazem e o resultado que
alcançam do que se estas pessoas se denominam feministas ou não. Muito
do trabalho histórico tem descoberto tradições e legados feministas de
mulheres que nunca se denominaram feministas, mas nós as localizamos
dentro de uma tradição feminista. Eu já vi trabalhos que falam sobre
Lélia Gonzalez no Brasil denominando-a feminista e eu não sei se ela se
considerava feminista. …
A senhora pensa em escrever algo sobre as suas impressões em relação à Bahia?
Eu acho que sim. Mas eu teria de voltar aqui e passar um pouco mais
de tempo fazendo uma pesquisa substantiva. Estou bastante impressionada
com o ativismo das mulheres em Salvador e, em geral, aqui é um lugar
maravilhoso.
A Cidade das Mulheres, de Ruth Landes, trabalho realizado na década de 30, trata do poder feminino no candomblé da Bahia.
Aqui no Brasil, o poder que as mulheres exercem é uma base muito
poderosa para o poder feminista no Brasil. Eu escrevi um livro, Legados
do Blues, e o meu argumento é que as mulheres do blues, durante os anos
20, ajudaram a forjar um feminismo da classe trabalhadora.
Os EUA elegeram pela primeira vez um presidente negro. Passado esse primeiro semestre do governo Obama, como a senhora avalia as suas ações?
Ele fez coisas boas e fez algumas coisas ruins. A minha posição em
relação a Obama nunca foi de pressupor que um homem sozinho,
independentemente de sua raça ou classe,
pudesse salvar o país e o mundo. O que foi bastante entusiasmante em
relação à sua eleição foi o que nós aprendemos sobre o país. O fato de
que tantas pessoas estavam predispostas a votar nele nos diz que houve
progresso. É claro que não atrapalhou o fato de ele estar disputando a
eleição com o partido de George Bush. A segunda questão é que Obama
apresentou-se como alguém conectado a uma tradição de luta negra. Ele se
identifica com o movimento dos direitos civis, com figuras como Martin
Luther King. Um homem negro
que tivesse uma política conservadora não teria feito a diferença em
termos de ponderarmos sobre onde estamos agora. A terceira questão e,
provavelmente, a mais importante, é que Obama foi eleito porque os
jovens criaram esse movimento em massa.
Este é um aspecto bem interessante sobre a vitória de Obama.
A eleição de Obama nos transmitiu o que estava acontecendo em termos
de organização de uma juventude com um movimento de base. Eram jovens
negros, brancos, latinos, indígenas. A minha esperança está na
capacidade de esse movimento ir na direção correta. Por outro lado,
Obama não tem tomado bons posicionamentos, como em relação à questão da
manutenção das tropas militares no Afeganistão.
O governo brasileiro adotou uma política de aproximação com os países
africanos. Há muita esperança de que o governo Obama possa fazer o
mesmo. Esta esperança, em sua opinião, pode se confirmar?
Obama tomou uma boa decisão ao visitar à África. Ele visitou Gana.
Isso prova que sua visita não era simplesmente em função das suas
origens, mas também para discutir problemas sérios. Em, termos de
relação entre os EUA e a África, principalmente na questão histórica,
foi muito importante a visita de Obama aos fortes de Gana, da Costa do
Cabo e à porta do não-retorno. Foi muito importante para os EUA verem
isso. Os afro-americanos já conhecem esses lugares. Eles viajam ao
Senegal, a Costa do Cabo, mas esta foi a primeira vez que essa conexão
histórica entre EUA e a África foi evidenciada. Isso estimulou uma
discussão sobre o papel da escravidão. Logo depois, por exemplo, houve
reportagens sobre a plantação onde um bisavô de Michelle Obama foi
escravo.
As questões históricas ganharam destaque.
Estas questões históricas são importantes. Mas o que eu considero ser
muito difícil para Obama fazer é reconhecer os danos horrendos que o
capitalismo causou à África. As políticas de ajustes estruturais do FMI e
do Banco Mundial fizeram com que vários países africanos desviassem
recursos de serviços sociais para setores lucrativos da economia.
Acredito que isso é que tem de ser abordado. Eu sei que o Brasil tem uma
posição mais progressista em relação à África. Então, provavelmente,
quando Obama visitar o Brasil ele vai poder aprender algumas lições.
Quando isso acontecer, estaremos extremamente felizes porque nós ficamos
muito envergonhados quando o George Bush veio e disse: Eu não sabia que
havia negros no Brasil.
O que pensa sobre as ações afirmativas no Brasil?
Não tenho acompanhado esta discussão rigorosamente. Mas, na minha
primeira visita ao Brasil, em 1997, durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso, as pessoas estavam apenas começando a reconhecer que o
Brasil não era uma democracia racial. As ações afirmativas ainda estão
sendo muito atacadas nos EUA, mas têm sido responsáveis pela integração
de várias instituições em lugares, por exemplo, como a África do Sul. Eu
sei que aqui no Brasil elas acontecem no que diz respeito às
universidades. As ações afirmativas são um instrumento muito importante.
O discurso nos EUA modificou-se. No lugar de se falar sobre ações
afirmativas fala-se agora sobre diversidade, o que é problemático. A
administração de George Bush foi a administração mais diversificada na
história dos EUA antes da administração de Obama. Mas ele colocou em seu
governo negros e latinos conservadores. Essa diversidade tem sido
definida como a diferença que não faz a diferença.
Quando foi implantada a política de ações afirmativas nos EUA?
Em 1977, tivemos o primeiro desafio jurídico às ações afirmativas.
Isso aconteceu num caso levantado por um homem branco que não foi
admitido para a Universidade da Califórnia e desde então há o caso de
vários outros processos judiciais impetrados por brancos que argumentam
ser vítimas de um racismo às avessas.
No Brasil, o STF prepara-se para julgar a constitucionalidade das cotas a partir de uma provocação do DEM.
A meu ver, deve-se desafiar pressuposições de que o caso trata apenas
de homens brancos como indivíduos e mulheres negras como indivíduos que
estão ali lutando por um emprego. As ações afirmativas nunca foram
concebidas para ajudar indivíduos apesar do fato de que indivíduos se
beneficiam das mesmas. A ideia é soerguer uma comunidade inteira.
Trata-se de uma população que foi objeto de discriminação. Tanto nos EUA
como no Brasil nós ainda vivemos com o sedimentos da escravatura. A
escravidão não é somente algo que existe no passado. Habita o nosso
mundo hoje em dia, com toda a pobreza, o analfabetismo. As ações
afirmativas são um passo inicial em termos de se abordarem questões de
escravatura, colonização. Esquece-se tudo isso. Parece que existem só
duas pessoas: um homem branco e um homem negro, ou um homem branco e uma mulher negra.
A senhora vem de uma geração muito politizada. Como analisa a ação política da juventude do mundo atual?
Eu estou muito entusiasmada. Não sou o tipo de pessoa que gosta de
deitar nos louros da minha geração. Eu sei que cada geração abre uma
nova trilha. Frequentemente pessoas que se engajaram em movimentos
pressupõem que cada geração tem de fazer a mesma coisa da mesma forma. A
minha postura é a de aprender com os jovens, porque sempre são eles que
provocam as mudanças radicais. Grande parte do meu ativismo é contra o
complexo industrial carcerário. Este é um movimento cuja maioria é
constituída por jovens que utilizam métodos diferentes. Eles utilizam
representações culturalistas, como música, e usam novas formas de
comunicação, como facebook. Estou aprendendo muito com isso.
É um movimento interessante, então.
Estou feliz que eles tenham feito isso, porque se transforma o
terreno para que se possa desenvolver novas ideias, expandindo o nosso
conhecimento sobre as possibilidades para a liberdade. Por isso eu acho
tão importante prestar atenção nos jovens. Eu não acredito nessas
pessoas que dizem que os jovens são apáticos que eles não estão fazendo
nada. Nós precisamos acompanhar este movimento, de maneira que estas
noções de liberdade se expandam e se tornem mais abrangentes porque eu
não acredito que chegaremos num ponto no qual possamos dizer isto é
liberdade, nós chegamos ao topo da montanha e podemos parar de lutar.
Acho que será uma luta infinita e as vitórias que conquistamos nos
permite imaginar novas liberdades. O discurso de Martin Luther King,
conhecido como Eu tenho um sonho, fala sobre chegar ao topo da montanha.
Ele nunca diz o que se vê ao chegar ao topo da montanha. Acredito então
que cada geração vai criar novas imaginações do significado de ser
livre.
Fonte: Blog Vi O Mundo
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