Sexualidade, machismo, rap e funk

NEGRIARA
 Por: Eleonor Alves
 Certas tentativas de definição do ato sexual se tornam uma espécie de metafísica, a qual analisa fenômenos sem considerar-se o contexto social em que estes ocorrem; como conseqüência, concepções historicamente determinadas são aceitas como naturais. 


No livro The Sadeian Woman – An Exercise in Cultural History, Angela Carter demonstra como o sentido que se costuma dar às relações sexuais, considerado atemporal, está na verdade relacionado a um determinado momento histórico. Certas tentativas de definição do ato sexual se tornam uma espécie de metafísica, a qual analisa fenômenos sem considerar-se o contexto social em que estes ocorrem; como conseqüência, concepções historicamente determinadas são aceitas como naturais.

A definição de ato sexual a que a autora se refere é a idéia de simples preenchimento de orifícios. Não só para Sade, cujos textos são o objeto de análise do livro, mas também para o nosso imaginário coletivo, essa concepção é considerada a representação mais simples, a essência do que entendemos a respeito do ato sexual. Entretanto, nessa definição estão implícitos os papéis de passividade, desempenhado pelos seres de sexo feminino, e de atividade, desempenhado pelos de sexo masculino. Mesmo em relações homossexuais, cada um dos parceiros deveria representar um desses papéis descritos. Além disso, essa regra se aplicaria não só a relações sexuais entre seres humanos, mas também às que ocorrem entre animais, o que demonstraria o caráter universal dessa distribuição de papéis.

Essa concepção, entretanto, está relacionada aos papéis sociais desempenhados pelos homens e pelas mulheres em determinado momento histórico. As mulheres, que realizavam (e ainda realizam) tarefas ligadas ao âmbito privado, estariam em posição de submissão e passividade, o que seria transposto para seu papel no ato sexual. Os homens, por sua vez, destinados a tarefas de âmbito público, naturalmente deveriam cumprir o papel ativo da relação sexual.

Até hoje se verifica as relações de dominação e submissão no ato sexual em palavrões, do tipo “foder”, em que a posição de passividade, entendida como papel feminino tanto em relações heterossexuais quanto homossexuais, é utilizada para ofender ou mesmo para expressar uma situação de desvantagem, embora o uso desses palavrões não seja conscientemente relacionado ao seu sentido de origem todas as vezes em que são usados.

A idéia de que o ato sexual é um simples preenchimento de orifícios, enfim, esconde o contexto, as pessoas envolvidas, os valores de uma época, além de, traduzindo as palavras da autora, reduzir os atores do ato sexual a instrumentos de simples funções, em que a busca do prazer se torna, em si mesma, uma questão metafísica.

Nos dias atuais, a deturpação da sexualidade, reduzindo-a a funções, permite, no seu estado mais extremo, imaginar-se que o prazer pode ser adquirido isoladamente por meio de produtos eróticos, como se o próprio prazer fosse uma mercadoria, isto é, não seria mais necessário nem mesmo uma pessoa que realizasse um serviço sexual, como ocorre na prostituição; um objeto inorgânico seria suficiente para alcançar-se o prazer. Escondendo-se que esses produtos são fabricados com o intuito do prazer individualista, costuma-se dizer que estes serão utilizados por parceiros em uma espécie de jogo, o que apenas é uma possibilidade, e não uma regra.

Embora a redução da sexualidade a funções não tenha surgido a partir dela, a música funk que se desenvolveu no Rio de Janeiro reforça, por meio das letras, a banalização do prazer, em que o contexto social desaparece, em que o ser humano – dono de uma história própria, que faz parte de uma determinada classe social, que tem uma personalidade, que sofre e deseja ser feliz – é reduzido a um papel a ser desempenhado no sexo. Sem entender essas questões, as pessoas que defendem o funk como é hoje – pois nem sempre as letras eram escritas assim – acusam os críticos de moralistas, quando na verdade essa música apresenta os problemas descritos acima. Entretanto, “os críticos” não fazem parte de um mesmo grupo, nem necessariamente compreendem essa questão da mesma maneira apresentada neste artigo, portanto as críticas que se fazem são heterogêneas, as quais, por sua vez, também podem ser criticadas.

De certo tempo para cá, certas pessoas defendem que o funk seria uma maneira de libertação sexual das mulheres, porém essa é uma perspectiva masculina historicamente construída, uma vez que a deturpação da sexualidade foi um processo desempenhado pela atitude dos homens ao longo do tempo. Por terem dominado economicamente as mulheres em dado período histórico que ainda não foi ultrapassado completamente, os homens preocupavam-se mais com o seu próprio prazer do que com o das mulheres no ato sexual, comportando-se de maneira egoísta, o que somente era possível por estarem numa posição de dominadores – note-se que esse comportamento é muito semelhante ao das classes dominantes em geral ao longo da história. Ainda que a maioria dos avanços não tenha se generalizado completamente, as mulheres, após a invenção dos métodos anticoncepcionais, alcançaram certa liberdade por terem o controle de sua sexualidade, além de terem alcançado certa liberdade econômica, a qual permite que elas imponham-se nas relações sexuais para que os seus desejos sejam satisfeitos. Entretanto, com a banalização da sexualidade proposta inconscientemente pelo funk, as mulheres começam a comportar-se como homens no sentido historicamente determinado, isto é, pensando somente no seu próprio prazer, gerando individualismo, ainda que a mulher não esteja isolada de fato – fenômeno que se percebe em outras situações cotidianas.

Se compararmos o tratamento dessa questão no rap, dos EUA principalmente, e no funk brasileiro, perceberemos que este propõe que as mulheres se comportem de uma perspectiva “masculina”; aquele, por sua vez, defende a dominação do homem, como se percebe pela exaltação dos cafetões nas letras de músicas e nos videoclipes. Essa generalização, porém, é falsa, uma vez que não se trata do estilo de música, mas sim de quem a realiza. Tanto os cantores de funk quanto os rappers dos EUA defendem a dominação do homem na relação sexual; talvez a diferença entre os dois esteja na maior apresentação de contexto social no rap. Por sua vez, certas mulheres do funk e do rap propõem que as mulheres se comportem de maneira “masculina”, porém o pequeno acesso que se tem na mídia às rappers dos EUA já demonstra que uma suposta dominação das mulheres é algo difícil de acontecer, mesmo porque a participação feminina nesse tipo de música, tanto no funk quanto no rap, é muito menor quantitativamente. Isso explica, talvez, a tentativa de afirmação feminina por meio de valores masculinos tradicionais. Boa parte das mulheres desse meio artístico, porém, analisa a questão de outra maneira.

O funk só pode ser concebido como favorável às mulheres da perspectiva de que a sexualidade da mulher não é voltada estritamente à reprodução, porém isso não é novo, uma vez que Sade, por exemplo, que viveu entre os séculos XVIII e XIX, já entendia essas idéias numa época em que nem mesmo existiam os métodos anticoncepcionais. Limitar-se a isso, hoje, significa parar na história.

Este artigo não tem como objetivo culpar os homens ou as mulheres de qualquer problema, mas sim mostrar a relação dialética que existe entre os âmbitos público e privado. De certa forma, assim como em várias relações humanas atuais percebemos a dominação, a submissão e o individualismo, as relações sexuais também ocorrem da mesma maneira, são marcadas pela forma como a sociedade se organiza. Para a superação desses problemas, a sociedade inteira deve mudar, devem surgir um novo homem e uma nova mulher, como diz Alexandra Kolontai, o que somente é possível plenamente por meio da transformação da sociedade, por meio dos valores comunistas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário